Quem atua no Aftermarket Automotivo sabe que as empresas familiares são protagonistas em segmentos como o varejo e a reparação. Engana-se, porém, quem pensa que esse cenário se restringe ao setor de reposição de autopeças.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 90% de todas as empresas do país são familiares — volume que as leva a responder por 65% do PIB nacional e por 75% dos empregos gerados.
Acontece que tamanha abundância não apaga um de seus problemas históricos: a dificuldade de superar a barreira da segunda geração. Quando olhamos para empresas de porte médio, por exemplo, estatísticas da Fundação Dom Cabral apontam que apenas 10% dos negócios familiares chegam à terceira geração. Entre os motivos estão a resistência à inovação por parte dos fundadores e a falta de critérios objetivos para preparar os sucessores.
Neste contexto, especialistas como a superintendente nacional do Instituto Euvaldo Lodi (IEL), Sarah Saldanha, destacam que a sucessão não deve ser um evento súbito, mas uma transição planejada, gradual e acompanhada de perto por instâncias de governança.
“O ponto de equilíbrio está em alinhar três dimensões: a prontidão do sucessor, a disposição do sucedido em se afastar – ou redesenhar seu papel – e a aceitação da equipe e da cultura organizacional. Quando esses três pilares estão bem estruturados, o processo flui com naturalidade”, afirma a liderança do órgão ligado à Confederação Nacional da Indústria e cuja capilaridade atinge 450 cidades do país.
Pensando em aprofundar essas e outras questões relacionadas à importância do planejamento sucessório no meio empresarial, conversamos com Sarah sobre os desafios e caminhos para garantir a continuidade das empresas familiares com maturidade e profissionalismo.
Novo Varejo – De que maneira minimizar os conflitos geracionais, de modo que a “vontade de manter a identidade do negócio” da primeira e da segunda geração não se torne um bloqueio às demandas por inovação dos sucessores mais jovens?
Sarah Saldanha – É fundamental entender que o conflito geracional, em muitos casos, não é um problema em si, mas o sintoma da ausência de uma cultura de governança e diálogo estruturado. A primeira e a segunda gerações, geralmente formadas pelos fundadores e seus filhos, carregam uma visão muito vinculada à preservação do legado, da cultura e da reputação da empresa. Isso é compreensível e até desejável. No entanto, quando essa visão se transforma em resistência à mudança, cria um bloqueio natural ao protagonismo das gerações seguintes, que nascem em um mundo mais digital, dinâmico e altamente competitivo. Para minimizar esse atrito, o caminho é construir pontes, não muros. Implementar uma governança familiar sólida, com fóruns de discussão intergeracionais, conselhos consultivos e protocolos familiares bem definidos, ajuda a organizar o espaço de fala e decisão de cada geração. Também é essencial valorizar a escuta ativa e o aprendizado mútuo. A inovação pode e deve ser aplicada sem romper com os valores fundadores. O desafio está em mostrar que a identidade da empresa não está apenas no “como foi feito”, mas no “por que foi feito”. E isso pode ser preservado mesmo com novas formas de atuação.
Novo Varejo - Como garantir que as novas gerações estejam, de fato, prontas para assumir uma cadeira de liderança — evitando que isso aconteça apenas por estarem “na linha de sucessão”?
Sarah Saldanha – Estar na linha de sucessão não pode ser o único critério para ocupar cargos de liderança. Isso seria, na prática, um convite ao fracasso. A preparação do sucessor precisa ser vista como um processo de longo prazo, com investimento estruturado em educação formal, desenvolvimento de competências comportamentais, conhecimento do setor e, principalmente, vivência real de gestão. É importante ter avaliações externas, mentorias com líderes experientes, e um plano de desenvolvimento individual que exponha o sucessor a diferentes áreas da empresa — e não apenas àquelas de maior visibilidade. Também é saudável que esse jovem tenha que provar seu valor como qualquer outro colaborador, submetendo-se a metas e acompanhamentos de desempenho. Por isso, o Instituto Euvaldo Lodi (IEL) possui uma metodologia específica para preparar o líder sucessor para assumir a gestão empresarial. Atualmente, estamos focados na sucessão empresarial familiar, mas também queremos expandir para os líderes que surgem em meio à construção de suas carreiras. E dessa forma, a maturidade para liderar vem com o tempo e com a exposição aos desafios reais. Um sucessor bem preparado é aquele que chega à liderança não por ser o “filho do dono”, mas por estar verdadeiramente capacitado a conduzir o negócio.
Novo Varejo – Qual a importância de possíveis sucessores terem experiências fora da empresa familiar, seja como funcionários, estagiários ou trainees? Como isso contribui para a maturidade e visão de negócio?
Sarah Saldanha – Ter experiências fora da empresa familiar é um dos fatores que mais contribuem para formar um sucessor maduro, crítico e inovador. Quando o herdeiro vive apenas a realidade da própria empresa, corre o risco de desenvolver uma visão limitada, de zona de conforto, e até de se sentir protegido de consequências reais. Trabalhar em outras organizações, especialmente em culturas corporativas diferentes, com lideranças diversas, permite ao futuro sucessor compreender na prática o que funciona ou não em termos de gestão, comunicação, processos e cultura organizacional. Ele aprende a lidar com hierarquia, cobrança e metas como qualquer outro profissional, o que fortalece seu senso de responsabilidade e humildade. O programa de sucessão empresarial do IEL possui essa qualidade em propor experiências além daquela já vivida na empresa em que o sucessor atua. Além da preparação estratégica, também colocamos o networking como meio para que esses empresários tenham referências externas que, no futuro, podem ser aplicadas na empresa da família com senso crítico. O herdeiro passa a enxergar o negócio não como uma extensão da família, mas como uma organização que precisa se manter competitiva. Essa é uma etapa essencial para formar um líder que seja respeitado não pelo nome, mas pela competência.
Novo Varejo - Quais sinais práticos indicam que uma transição de liderança pode estar sendo feita cedo demais ou tarde demais? Como encontrar o timing certo?
Sarah Saldanha – O timing da sucessão é talvez um dos pontos mais críticos do processo. Quando a transição é feita cedo demais, o novo líder pode não ter maturidade suficiente para tomar decisões estratégicas, pode ter dificuldade em conquistar legitimidade perante os colaboradores e, muitas vezes, acaba sendo manipulado por figuras mais antigas da gestão. Isso gera insegurança e instabilidade. Por outro lado, uma sucessão tardia tende a sufocar a inovação e engessar a empresa. É comum vermos líderes fundadores que se tornam o maior gargalo do crescimento da organização, porque se recusam a abrir espaço, delegar ou aceitar novos modelos de negócio. Esse atraso gera frustração na nova geração e pode levar à perda de talentos, inclusive familiares. O ponto de equilíbrio está em alinhar três dimensões: a prontidão do sucessor, a disposição do sucedido em se afastar – ou redesenhar seu papel – e a aceitação da equipe e da cultura organizacional. Quando esses três pilares estão bem estruturados, o processo flui com naturalidade. A sucessão não deve ser um evento súbito, mas uma transição planejada, gradual e acompanhada de perto por instâncias de governança.
Novo Varejo – Na sua experiência, o que costuma ser mais difícil: preparar o sucessor ou preparar a organização para aceitar essa nova liderança?
Sarah Saldanha – Ambos os processos são desafiadores, mas preparar a organização, na prática, tende a ser ainda mais difícil. A resistência à mudança é um traço comum nas empresas, principalmente nos familiares, em que as relações interpessoais são mais complexas. Mesmo que o sucessor esteja tecnicamente pronto, ele só terá sucesso se for legitimado pela cultura da empresa, pela liderança sênior e pela equipe. Muitos colaboradores têm medo do novo, especialmente quando o novo vem de uma figura jovem, com sobrenome conhecido, mas sem histórico de liderança interna. É preciso trabalhar a comunicação, criar ambientes de escuta, envolver as equipes no processo e mostrar que a transição não representa uma ruptura, mas uma continuidade com renovação. Para isso, a organização precisa ser educada para a sucessão. Isso inclui treinamentos, desenvolvimento de lideranças intermediárias e fortalecimento dos conselhos de governança.
Novo Varejo - O que fazer quando há mais de um herdeiro interessado na liderança? Quais estratégias ajudam a evitar rivalidades e a construir uma governança equilibrada?
Sarah Saldanha – Ter mais de um herdeiro interessado pode ser uma bênção ou uma armadilha, tudo depende de como a família lida com isso. Rivalidades surgem quando não há regras claras, critérios objetivos e, principalmente, quando se permite que o emocional interfira nas decisões estratégicas da empresa. A primeira medida é estruturar um protocolo familiar que defina com clareza os papéis, critérios de entrada e promoção, e a lógica de meritocracia para quem deseja liderar. Isso não significa que todos os herdeiros devem ser excluídos da liderança, mas sim que todos devem ser submetidos às mesmas exigências. Também é possível trabalhar modelos de cogestão, conselhos de administração com representações familiares e profissionais independentes, ou mesmo divisão de áreas estratégicas, respeitando o perfil de cada herdeiro. O segredo está na comunicação constante e no respeito à visão de longo prazo da empresa. Governança é o antídoto contra o ego.
Novo Varejo – Você já viu casos em que a melhor decisão foi não passar o bastão para a família? Como uma empresa pode saber a hora certa de profissionalizar completamente a gestão e tomar essa decisão com maturidade?
Sarah Saldanha – Sim, e são muitos os casos. Às vezes, por mais que exista a intenção, a família não tem membros preparados, disponíveis ou comprometidos com o negócio. Nesses casos, insistir em uma sucessão familiar é um erro estratégico. Profissionalizar a gestão pode ser, sim, a forma mais eficaz de perpetuar o legado — ainda que isso pareça paradoxal. A decisão madura passa por uma análise honesta das competências disponíveis na família e do que o negócio exige naquele momento. Empresas com governança estruturada e conselhos independentes conseguem tomar essa decisão com mais racionalidade. Importante dizer: profissionalizar não é excluir a família, mas redefinir seu papel, muitas vezes como acionistas, membros do conselho ou em cargos estratégicos que não sejam necessariamente a presidência.
Novo Varejo – Cite os erros mais comuns em um processo de sucessão empresarial e os prejuízos que eles causam.
Sarah Saldanha – Entre os erros mais frequentes estão a ausência de planejamento de longo prazo, falta de critérios objetivos para escolher o sucessor, negligência na preparação da nova geração, sucessão centralizada na emoção e resistência do fundador em se afastar da operação. Esses erros levam a prejuízos profundos: queda de performance, perda de talentos, desmotivação de equipes, enfraquecimento da cultura e, em casos mais graves, ruptura da sociedade ou até fechamento do negócio. Sucessão é uma etapa inevitável e deve ser tratada com o mesmo rigor estratégico que qualquer outro grande movimento da empresa.










