A transição energética para o carro híbrido no Brasil é uma boa notícia para o segmento da distribuição de autopeças. Considerando que o veículo 100% elétrico apresenta drástica redução do número de componentes para reposição, manter na receita o motor a combustão garante a estabilidade dos negócios no futuro.
Isso não significa dizer que os distribuidores não enfrentem desafios complexos. Um deles é a crescente diversificação da frota que roda no país, que afeta de forma impactante a composição dos estoques. Nesse sentido, as ferramentas de inteligência artificial tendem a ser determinantes para garantir mais eficiência operacional às empresas. Os temas foram tratados no painel relativo à distribuição no Seminário da Reposição 2024.
MEDIADOR
Adalberto Piotto, jornalista da revista Oeste
DEBATEDORES
Luis Fernando Hartner, Diretor de Demanda e Experiência com Cliente da Takao
Joaquim Alberto da Silva Leal, CEO da Medauto
Sérgio Milanez, Sócio-administrador da Rufato
Adalberto Piotto – Por mais que usemos todas as tecnologias disponíveis hoje, o cenário é desafiador. Alguém vai atrasar a entrega de uma peça ou a reposição de um estoque e o consumidor vai ter que lidar com isso. Como responder para esse consumidor?
Joaquim A.S. Leal – O Danilo Fraga falou que para atender amortecedor em 100% precisa de três marcas dentro de casa. Nos anos 90 você tinha mais ou menos 10 mil SKUs para atender a frota, hoje precisa ter 10 vezes mais. A necessidade do volume de estoque e de variedade é um problema inerente ao nosso negócio. Ou você aprende a lidar com isso, ou está fora do mercado. Essa é a realidade. O próprio mercado te obriga a ter mais de uma marca. A cobertura das partes, a diversidade de produtos que tem, de equipamentos, é um absurdo. E vai crescer mais. A gente tem que se virar com essa realidade.
Adalberto Piotto – Todo mundo cresceu com essa ideia de que muito estoque e a perda de dinheiro tinham parado. Agora tem que ter estoque. Se eu tiver duas marcas, não três, para cada um dos equipamentos, levando-se em conta a diversidade e a quantidade modelos, esse estoque vai ter que ser grande. Como eu lido com esse paradigma do passado, de que não pode ter muito estoque?
Joaquim A.S. Leal – Ninguém quer carregar estoque. A fábrica, o distribuidor, é caro para carregar. Só que, para sobreviver, tem que fazer isso. O ramo de autopeças exige altos níveis de investimento e um alto nível de problemas pela diversificação de produtos e fornecedores. Eu fiquei aqui curioso com essa apresentação de IA. Como é possível já ter tanta disponibilidade de IA e nós, no aftermarket, ainda estamos trabalhando no século passado com muita coisa? Eu tenho que colocar os pedidos na fábrica. Imagina se cada um de vocês tivesse que pedir para a Sabesp preencher a caixa d’água, quantos de vocês iam ficar sem água? A maioria. Não tem cabimento. A gente tem que fazer pedido. A IA tinha que estar dentro da nossa empresa para falar ‘opa, caixa d’água aqui baixou. Manda mais dois amortecedores para a Medauto’. Essa tem que ser a inteligência artificial. Trabalhar em conjunto com as fábricas, o distribuidor, os varejos, as oficinas, com toda a cadeia. A IA faz muito sentido, desde que seja aplicada. No meu modo de ver, estamos longe desse caminho. O problema ainda fica na nossa decisão e não no sistema automatizado da fábrica – se ela sabe que eu vendi um amortecedor hoje, tem mais facilidade de planejar a sua produção. Ela tem que repor esse amortecedor para a Medauto. Mas tem que ser o conjunto. Não adianta só eles. É a ponta, o que está acontecendo lá. Agora, a capacidade do aftermarket de se desenvolver é exponencial. Eu me lembro que a Medauto não tinha, acho, mais que dois mil SKUs em 1980, 90. Hoje ela tem que ter 20 mil. E é ruim ainda o serviço nosso. Não consegue atender ainda bem. Você vê a quantidade. Outra coisa. A distribuição convive com o problema fiscal. Essa mudança fiscal que teve depois da substituição tributária. O que aconteceu com o distribuidor? Hoje, em grandes estados, tem que ter um distribuidor para atender a legislação. O aftermarket teve essa capacidade de se adaptar e atender.
Luis Fernando Hartner – Como indústria, eu acho que o desafio é a disponibilidade. Colocar em tempo, em quantidade, o que os distribuidores precisam. E essa gama muito grande de marcas, motores, peças, nos leva a um desafio de tentar entender qual é a melhor curva em cada região, a melhor curva em cada distribuidor. O desafio é sentar com cada um dos distribuidores e entender qual curva ele precisa para que tenha a disponibilidade para conseguir entregar o produto para o consumidor. Uma questão profunda é a análise dos dados. Entendimento da necessidade por meio de dados de planejamento. Esse trabalho conjunto entre a indústria e os distribuidores eu acredito que vai ajudar a otimizar esse processo de uma maneira muito mais fluida, para que ele consiga colocar o produto no tempo certo, para que consiga capturar essa venda. Porque uma venda perdida hoje, você não recupera mais.
Adalberto Piotto – Você vê algum empecilho para essa interação acontecer?
Luis Fernando Hartner – Não, até porque isso eu já vejo acontecendo no dia a dia. O maior empecilho é a quantidade de itens e a facilidade dessa informação transitar. Eu acho que o canal está criado. Falta a nós tentarmos conectar esses dados de uma maneira mais eficiente. Já tem casos de sucesso no dia a dia, mas eu acho que intensificar isso, por meio dessa discussão em torno dos dados, é o que vai facilitar o processo.
Adalberto Piotto – Nós temos, sim, a questão do estoque, que precisa ser repensado. Uma possibilidade de redução do tamanho, obviamente, de venda de peças, porque o carro elétrico tem menos peças. Mas temos variáveis. O quanto esse mercado vai avançar e com que velocidade, e se vai, de fato, avançar tanto quanto se pressupõe. Leva-se em conta a realidade brasileira. E eu tenho o consumidor ávido por uma solução, que vai a uma loja e precisa daquele componente, ou do mecânico para dar uma resposta rápida. Mas eu tenho também o fornecedor, e toda a intermediação do processo. Consigo acelerar isso com essa quantidade maior de peças e modelos hoje ofertados no país?
Sérgio Milanez – Na verdade, o problema que eu vejo é vender. Depois que você vender, vai achar a solução. Eu falo por mim, estamos hoje num CD de 40 mil metros quadrados e sempre tivemos o desafio. E o que é? Tecnologia. Você tem hoje como evoluir os sistemas de WMS, RFID, que nós implementamos, é um sucesso. Máquinas elétricas para fazer a separação dos pedidos. E eu estou falando de colisão, os produtos são maiores, para-choque, capô, para-lama, faróis, é muito mais complexo o armazenamento e a distribuição. Você tem que ter espaço, tecnologia, e estar a fim de investir. Hoje na Rufato são 35 mil SKUs, 27 estados e a gente trabalha. Quando você tem pessoas, processos e sistemas envolvidos na operação, não tem mimimi, é trabalhar. Quando você tem um time legal na sua empresa, dedicado a tudo isso, não tem como não andar para frente.
Adalberto Piotto – Na questão dos carros, se houver essa mudança, na velocidade que se espera, o núcleo de peças de um carro elétrico/ carro híbrido e um carro a combustão é muito diferente. Como eu me preparo? Porque eu vou ter um consumidor que, talvez, vai demandar outro produto. Eu vou fornecer outro tipo de equipamento, outro tipo de acessório, que vai compensar ou vai trazer uma nova perspectiva para esse fornecedor?
Joaquim A.S. Leal – O que está acontecendo hoje, essa evolução da diversificação de produtos, obriga o aftermarket a trabalhar. Muito mais capital, muito mais trabalho, mais espaço, mais tecnologia – a tecnologia para você conseguir sobreviver. E esses produtos novos, eles são automáticos, a demanda deles. Você está sempre precisando de mais espaço, de mais SKUs na empresa. É um dinamismo natural. O que me preocupa, quando eu falo do carro elétrico/ carro híbrido eu sou otimista com o Brasil, acho que o carro elétrico e o caminhão elétrico não têm tanto espaço como na Europa, nos Estados Unidos. Mas quando você vê como a BYD coloca 150 mil carros aqui do dia para a noite e começa a ver carro elétrico para tudo quanto é lado… Se, como disse o Claudio (Sahad), o carro elétrico demorar 20 anos para substituir nossa frota, daqui a 20 anos você só vai precisar de ter 2 mil SKUs na sua empresa. Lá na frente vai diminuir o tamanho do aftermarket violentamente. Agora, hoje não, hoje você tem que continuar com tecnologia, com IA, com todos os recursos que estão disponíveis para sobreviver, porque tem uma avalanche de produtos. Você continua vendendo o disco de freio do Fusca até hoje. É uma paranoia a quantidade, a demanda que você tem que ter de estrutura para aguentar esse trânsito. Ou você se especializa, que é outro canal que está em aberto, você pode trabalhar dentro de uma especialização de marcas, de partes do motor, de freios, são outros caminhos, e cada um vai seguir o seu roteiro.
Adalberto Piotto – Nichar a atuação é uma solução dentro dessa enormidade de modelos e quantidade de peças?
Luis Fernando Hartner – Pode ser uma alternativa. Eu acho que há espaço para trabalhar nichado. Mas eu gostaria de voltar ao que foi conversado aqui. Quando a gente olha toda essa questão, inclusive dos carros elétricos, até os estudos mostram que a grande maioria vai ser híbrida, e na híbrida vai continuar o motor a combustão. Então também vai continuar a quantidade desse carros, a complexidade, pode ser que ela se altere um pouco, mas nós vamos continuar tendo que garantir a melhor disponibilidade com o menor estoque possível. Então, trabalhar nichado é uma possibilidade, sim, mas eu acho que a gente pode trabalhar melhor a eficiência do planejamento logístico, da forma de levar o produto, olhar para o e-commerce, que vem crescendo muito na autopeça – é uma coisa que nem todos exploram, mas é uma realidade que cada vez mais vai crescer. Você consegue até dosar as curvas que colocar no e-commerce e no seu local. Então eu acho que todas as soluções combinadas podem ocorrer, mas vou no cerne, que é trabalhar com inteligência de mercado e trabalhar no planejamento logístico, nessa distribuição.
Adalberto Piotto – O consumidor brasileiro é provavelmente o que se adapta mais rapidamente a qualquer coisa, mas é o que reage muito rapidamente também à novidade. Então, se a gente for partir do plano B agora, que não é uma invasão imensa do carro elétrico, nós temos um cenário muito tropicalizado, ou seja, o Brasil vai ter carro de todo mundo, mas ninguém vai ficar sem mercado? Seja o fornecimento nichado de peças de carro a combustão só, ou de carro híbrido que aumenta ainda mais, ou de carro elétrico?
Sérgio Milanez – Em 2018 eu fui para a China e todos os táxis eram elétricos. Em 2023 eu retornei. Praticamente 90% elétricos. Como foi essa mudança tão rápida? 95% dos carros elétricos. É o governo incentivando. Eu tenho certeza que aqui, para acontecer isso, deveria ter um incentivo, porque você pega um motorista de táxi, ele faz a conta. Qual incentivo ele vai ter, o que vai retornar do investimento. Eu acredito que a gente está no caminho, mas ainda vai levar um tempo.
Adalberto Piotto – E talvez não aconteça. O cenário chinês no Brasil hoje é impossível. Primeiro que não haverá condição de dar todo esse incentivo. A questão fiscal do governo brasileiro não permite. Segundo que eu tenho outro concorrente que vai reclamar. Então vai diminuir ainda mais a chance. Terceiro que eu não sei se eu tenho essa demanda. E outra, eu tenho um prêmio que o mundo não tem, que é a matriz. Por mais que o carro elétrico também vai ser movido a uma energia, a produzida normalmente com fontes renováveis, eu tenho etanol. O etanol é uma indústria poderosa. Tem uma série de outras coisas. É daí que o carro híbrido acontece. Se eu tenho o carro híbrido, esse mercado do Brasil não é um problema, é uma solução. É isso?
Joaquim A.S. Leal – Lá o governo não incentiva, o governo manda, né? É carro elétrico e acabou. Eu vi uma palestra sobre motores, produzir um carro elétrico – todo esse problema está na parte verde, a descarbonização – gera mais carbono do que a produção de um carro normal, com motor a combustão. Se você pegar um Gol e ele rodar cinco anos com álcool, a curva no final, o Gol a álcool vai poluir menos do que o carro elétrico. Então, é uma decisão de governo, se vai poluir menos, não precisa. Agora, do ponto de vista do cidadão, eu, por exemplo, a facilidade do carro elétrico, não ter manutenção, não ter que parar para trocar o óleo, fazer nada, me parece uma ideia interessante. Mas precisa estar casada com os interesses do governo, com todos os aspectos. Se ele produz mais carbono já de cara, eu acho que não é um bom negócio para o Brasil.
Adalberto Piotto – A gente está trazendo o debate de uma forma para saber, sim, existe um problema, sim, existe um desafio, mas a gente quer mensurar esse desafio, porque senão a gente está aqui discutindo uma coisa que talvez não aconteça, ou não aconteça na proporção que se imagina. Essa é a questão. Eu estou querendo trazer vocês aqui para a gente tentar mensurar a realidade e o que de fato é factível no futuro próximo.
Luis Fernando Hartner – Eu encaro que no Brasil a gente tem uma tempestade perfeita quando a gente olha a questão dos elétricos. Tem problema de infraestrutura, eu tenho um país continental com diferentes culturas, com vários países dentro do mesmo país. Eu tenho a questão da depreciação desses carros, muito mais acelerada que a combustão. Isso é um item também que vem trazendo bastante desconforto nesse planejamento do elétrico. Muitas empresas já retrocederam seus projetos elétricos. Recentemente a Volvo anunciou que não ia mais eletrificar 100%, deixou uma parte voltando para o carro híbrido. Então eu acredito muito no crescimento do carro híbrido, principalmente nos grandes centros. E olhando sob nossa ótica acho que vai ser positivo porque ele tem a parte de combustão, e esse carro híbrido vai quebrar. E nós vamos estar preparados para fazer essa distribuição. Nossa lição de casa é o quão mais eficiente a gente vai fazer essa distribuição para que eu consiga absorver esse híbrido e, também, quem sabe a parte elétrica, de uma maneira que eu consiga garantir que esse cenário perdure por mais tempo.