Desconfiança cria ameaça de crise sistêmica para o varejo brasileiro -

Desconfiança cria ameaça de crise sistêmica para o varejo brasileiro

Descoberta de rombo nas Lojas Americanas tem efeito dominó e obriga Governo a se movimentar para socorrer o setor como um todo

Lucas Torres [email protected]

O ano de 2023 começou com notícias decisivas para a conjuntura do varejo brasileiro. No centro deste cenário, a descoberta de um rombo que supera a casa dos R$ 40 bilhões no caixa das Lojas Americanas, varejista com o 5º maior faturamento do país em 2022, ligou um sinal de alerta entre os diversos segmentos que se relacionam com o setor. Entre os mais reativos à crise da empresa estão as instituições financeiras e os fundos de investimento.

Dois dos três maiores bancos privados do país, Bradesco e Itaú se apressaram para provisionar 100% de suas exposições às Americanas a fim de demonstrar ao mercado que estavam resguardados em caso de calote. O Santander, por sua vez, outro membro do tripé dos ‘bancões’ locais, optou por uma provisão de 30%. Vale destacar que, juntos, os três bancos estão entre os maiores credores da gigante do varejo e que seus provisionamentos somados alcançaram a casa dos R$ 8,7 bilhões. Pior do que um abalo de confiança pontual, porém, está o fato de o problema identificado nas Lojas Americanas ter sido interpretado como o primeiro dominó de uma sequência de fragilidades contábeis e balanços incongruentes a serem identificados no setor varejista nacional. Esta interpretação foi reforçada por problemas noticiados dias depois, tais como a tentativa de renegociação de dívida por parte da Marisa; o decreto de falência da Livraria Cultura; e o calote da Tok&Stok no ‘Vinci Logística’, fundo imobiliário proprietário de um dos balcões logísticos da empresa. Muito bem, neste momento você pode estar se sentindo aliviado pelo fato de este cenário de turbulência não ter chegado ao varejo de autopeças. Mas, a realidade pode ser um pouco diferente.

Em primeiro lugar, a Americanas representa um importante marketplace para inúmeros varejistas de autopeças que, a depender dos desdobramentos da questão, podem ter problemas com um importante canal de comercialização de seu portfólio. Só que há muito mais além disso. Se a crise se tornar conjuntural, os problemas também poderão se multiplicar. De acordo com a economista da FecomercioSP, Kelly Carvalho, a resposta para esta crise de confiança deve se refletir em uma mudança de postura geral dos bancos em suas relações com o setor varejista. “Geralmente estas empresas têm os bancos como seus principais credores, o que vai gerar um clima de insegurança entre as instituições financeiras. Todo esse efeito cascata pode se espalhar pelo setor por um canal muito importante que é o crédito”, projetou Carvalho. Portanto, para compreender o impacto de um endurecimento da concessão de crédito no setor varejista, é preciso mergulhar em temas estruturais – tanto do setor quanto da economia como um todo. Nesta tentativa de explicar o contexto atual, o presidente do IBEVAR – Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo & Mercado de Consumo, Claudio Felisoni, descreveu o caso das Lojas Americanas como um ‘tsunami em um mar que já não era de brigadeiro’ se referindo a variáveis como a alta da inflação, crescimento dos juros, aceleração do índice de endividamento das famílias e o crescimento da inadimplência como fatores que têm apertado as margens do varejo nos últimos meses. Como resultado direto desta conjuntura econômica desafiadora do país, as empresas do varejo listadas na B3 – nossa Bolsa de Valores – têm apresentado uma alta substancial em seus índices de endividamento.

Segundo levantamento da TC/Economática, o número destas empresas com endividamento alto dobrou entre o terceiro semestre de 2022 e o mesmo período do ano anterior. Além disso, das 14 varejistas com capital aberto no Brasil, quatro tinham o indicador de endividamento dívida líquida/Ebtida acima de três vezes – casos das já citadas Americanas e Marisa, bem como de Via e Magalu, outras duas gigantes do setor. Em resumo, a sinalização de crédito feita pelos bancos nacionais chegaria em um momento de vulnerabilidade do varejo, fator que, na opinião de Felisoni, pode ocasionar problemas de operação como restrição do abastecimento e comprometimento do fluxo de caixa das vendas.

Cenário de dificuldade impulsiona pedidos de recuperação empresarial e renegociação de dívidas

A sirene que soou com os pedidos de recuperação empresarial e renegociação de dívidas de Lojas Americanas, Marisa e Livraria Cultura pode ser apenas a ponta do iceberg de uma crise que tende a se configurar como sistêmica. Especialista no tema ‘inadimplência empresarial’ do escritório GBA Advogados Associados, Felipe Granito relata que o volume médio do serviço de recuperação empresarial quase dobrou na sua empresa nos últimos três meses – acrescentando um detalhe importante: esses pedidos vieram majoritariamente de pequenas e médias empresas do setor de varejo.

Segundo ele, a congruência dos problemas apresentados pelas PMEs clientes do GBA Advogados Associados, com as notícias a respeito das empresas de grande porte divulgadas recentemente, comprova uma tese: “Sempre que as grandes operações apresentam os sintomas da crise financeira no setor, provavelmente as pequenas e médias já vêm suportando essas mesmas consequências há muito tempo”, afirmou. A ideia de que a crise do varejo é, de fato, sistêmica e pode trazer danos severos à economia nacional como um todo, sobretudo considerando que o setor varejista é aquele que mais emprega no país, fez com que o Governo Federal sinalizasse, neste início de março, que está se preparando para oferecer socorro. “O Governo tem uma proposta de criação de uma linha de crédito para fornecedores”, compartilhou Kelly Carvalho. Para fazê-lo, a equipe econômica do presidente Lula estuda, por exemplo, a possibilidade de prorrogação do FGI-Peac, um fundo garantidor que sustenta o Programa Emergencial de Acesso ao Crédito, criado por Jair Bolsonaro no auge da pandemia.

Em sua estrutura, o FGI-PEAC utilizou um aporte de R$ 20 bilhões do Tesouro Nacional para, com isso, oferecer garantia de até 80% do valor da operação de instituições financeiras em crédito oferecido para PMEs e grandes empresas. Ao comentar as expectativas do IBEVAR para os impactos deste possível socorro advindo do Governo Federal, Claudio Felisoni mesclou otimismo e cautela. “É, sem dúvida, um movimento positivo, ou seja, auspicioso para o varejo. Entretanto, os efeitos concretos, dadas as restrições impostas pelo programa, serão limitados”, opinou.

Financiar necessitando de financiamento: a conta fecha?

A diminuição do poder de compra das famílias brasileiras, originada – dentre outros motivos – pela forte pressão inflacionária dos últimos meses torna o papel de financiador do varejo ainda mais fundamental na sua relação com o consumidor final.

Não por acaso, grandes varejistas como a Americanas, o Magalu e até mesmo supermercados como Carrefour, o Grupo Big e o Grupo Muffato criaram seus bancos digitais para servirem como alternativa de bancarização para seus consumidores. A recém surgida crise sistêmica no varejo, somada ao alto índice de inadimplência das famílias brasileiras, tem, porém, levantado questionamentos sobre a capacidade das empresas do setor seguirem atuando como ‘financiadores’, ao passo que, elas mesmas, têm mostrado necessidade de ter mais acesso ao crédito. Dentro deste contexto, a economista da FecomercioSP Kelly Carvalho, indica que, apesar da oferta de crédito ser uma estratégia muito importante para alavancar as vendas e fidelizar os clientes, é fundamental que o varejista se atente a alguns pontos para evitar inadimplência e prejuízos financeiros que possam comprometer o seu fluxo de caixa. Entre estes pontos, Kelly Carvalho destacou: – A análise de crédito: antes de abrir uma conta na plataforma digital ou oferecer boletos, é importante que o varejista analise criteriosamente a situação financeira do cliente. Analisando seu histórico de crédito, seu score, a fonte de renda e outras questões como as despesas fixas do cliente. – Estabelecer limites de crédito: ele deve ser estabelecido de acordo com a capacidade financeira e o histórico do consumidor. Isso vai evitar que o cliente se endivide além de suas possibilidades, diminuindo assim o risco do crédito. – Definição de prazos de pagamento muito claros: para quem vende via boleto, sobretudo, é preciso que os prazos sejam realistas para que o cliente possa se programar financeiramente. É preciso dar transparência a questões como multas e juros a fim de incentivar o cliente a cumprir com suas obrigações.

O tipo de produto e a capacidade financeira do cliente são dois balizadores importantes nesta definição. – Identidade do cliente: o varejista deve se certificar que está lidando com a pessoa certa, verificando a identidade por meio da conferência de documentos como RG e CPF. Hoje, com o avanço tecnológico, os crimes de estelionato têm aumentado cada vez mais e demandam muita atenção. Corroborando a visão da economista da FecomercioSP, Claudio Felisoni fez um pedido por cautela por parte dos varejistas, alertando sobre os riscos envolvidos em se financiar uma venda sem estar devidamente preparado para tal. “É preciso dizer que nesses momentos em que o comprometimento da renda aumenta o processo de análise de crédito precisa ser mais rigoroso e não menos. Muitas grandes empresas de varejo quebraram exatamente seguindo essa rota. Exemplo: Arapuã”, complementou o dirigente do IBEVAR.

Como estão os varejos de autopeças?

Ao analisar o setor varejista, muitos institutos de pesquisa e entidades deixam de lado as características específicas do setor de autopeças. Tal cenário nos levou a levantar o questionamento: como estão algumas das principais empresas do comércio de peças automotivas em meio ao atual momento econômico do país?

Para alcançar este enquadramento aproximado, nada melhor do que conversar com os empresários que convivem com o cotidiano do setor. Sendo assim, convidamos Flávio Ramos, CEO da gaúcha Ramos & Copini, e Roberto Rocha, fundador da campineira Rocha Autopeças para comentar a relação das suas empresas no âmbito do crédito. Veja o que eles disseram.

Novo Varejo Automotivo – Sua empresa buscou crédito nos últimos meses? Você tem visto maior dificuldade na hora de conseguir empréstimos com boas condições junto às instituições financeiras?

Flávio Ramos – Buscamos crédito no início do ano passado e conseguimos as condições necessárias.

Roberto Rocha – Nós da Rocha Autopeças temos o princípio de fazer investimentos com o capital próprio, desta forma não temos dívidas com bancos. No final do semestre passado surgiu uma oportunidade de aquisição de uma área com edificação para montar um novo Centro de Distribuição, pois o nosso atual está muito apertado. Então, consultei o banco sobre a possibilidade de fazer um empréstimo para pagamento a médio prazo, fui de pronto atendido com o valor e condição de pagamento favoráveis, mas creio que isso ocorreu por eles terem o nosso histórico de movimentação e o valor não comprometer o faturamento da empresa. Acabamos nem usando o valor, pois optamos por parar o acabamento da nova sede da empresa e usar o dinheiro para a aquisição.

Novo Varejo Automotivo – Agora falando sobre a relação da sua empresa com os consumidores: o crédito mais caro (juros altos) tem diminuído o ímpeto de consumo?

Flávio Ramos – Sim, os juros altos inibem o consumo, dificultam a concessão de prazo mais longo, aumentam o custo e, consequentemente diminuem a venda. Para a distribuição e varejo isso é negativo em todos os sentidos.

Roberto Rocha – Os consumidores estão meio avessos a fazer dívidas, quando aparece alguém que opta pelo pagamento a prazo e não se preocupa com juros sobre a dívida eu fico preocupado que ele pode acabar não pagando. Nós temos planos de pagamento que vão até 10 vezes com juros baixos ainda, porém não incentivo muito esta forma pois ficamos com o nosso capital de giro preso por maior tempo, mas acudimos o nosso cliente que está em dificuldade naquele momento. Isto ajuda a manter as vendas. O que tem assustado o consumidor é o aumento dos preços das peças, o fabricante tem realizado aumentos muito acima da inflação sem muita lógica. Depois que um aumenta, os outros vão atrás.

Novo Varejo Automotivo – Com este crédito mais caro, o varejista está tendo de fazer mais esforços para oferecer melhores condições para o consumidor final na hora de parcelar suas vendas? Como fazer isto sem se expor ao risco da inadimplência?

Flávio Ramos – Não tem mágica, pois é necessário ser responsável com a concessão de crédito e, principalmente, com o caixa da empresa. Com o cenário atual, a redução do prazo e o aumento no rigor quando da concessão no crédito são uma necessidade para a empresa. Roberto Rocha – Todo o parcelamento feito com mais de 3 parcelas (10/30/60) só é feito através de operação com cartão de crédito, o que reduz muito o risco da inadimplência.

Novo Varejo Automotivo – Em percentual, qual a parcela das vendas da sua loja realizadas a prazo na comparação com aquelas feitas a vista?

Flávio Ramos – 80% a prazo e 20% a vista.

Roberto Rocha – A média está em torno de 50/50%, dentro do total do grupo; em algumas regiões ainda se cultua o pagamento a longo prazo, o reparador insiste que a loja de autopeças tem de financiar a operação dele, ele não põe o dinheiro dele no negócio. Em outras regiões onde os clientes já aprenderam a ser empresários no ramo, eles optam pelo pagamento a vista para ficar com eles o rendimento do dinheiro envolvido


Notícias Relacionadas