Endividamento recorde preocupa o varejo para 2023 -

Endividamento recorde preocupa o varejo para 2023

Consultor de negócios do Sebrae analisa o cenário e aponta os segmentos que mais podem sofrer com a escassez de crédito

Lucas Torres [email protected]

Encerrando o ano com a nona alta consecutiva, a inadimplência já atinge um número de 68,39 milhões de brasileiros. De acordo com dados do Serasa Experian, o cartão de crédito é, digamos, o principal ‘vilão’ deste processo, 53% do total de endividados. Para o varejo, este cenário já geraria uma preocupação automática. Afinal, historicamente um cenário de alta na dívida das famílias reflete na redução do poder de compra dos consumidores.

Esta noção tácita, no entanto, é ainda mais agravada quando nos deparamos com o perfil atual da dívida dos cidadãos brasileiros. Ao estratificar o levantamento por segmentos de consumo, o Serasa Experian identificou que a maior parte das dívidas atuais foi adquirida na hora de atender necessidades básicas: 65% delas em supermercados, na compra de alimentos. Em entrevista exclusiva ao Novo Varejo Automotivo, o consultor de negócios do Sebrae, Pedro João Gonçalves, refletiu sobre os setores que podem observar uma queda significativa no fluxo de clientes. “Uma restrição maior ao crédito tende a afetar de forma mais pronunciada os segmentos que vendem produtos

e serviços de maior valor unitário. Dessa forma, os serviços de manutenção mais caros tendem a ser menos demandados. Por outro lado, o crédito mais caro afeta as vendas no mercado de veículos, e o uso de um veículo por um tempo maior pode implicar a necessidade de alguns serviços de manutenção”, analisou o consultor ao ser questionado sobre suas expectativas para o aftermarket automotivo.

Além desta questão, Gonçalves abordou ainda temas como os possíveis impactos deste ambiente de endividamento para o varejo de maneira geral em 2023, bem como maneiras com as quais os negócios podem prevenir possíveis problemas de inadimplência com seus clientes.

Novo Varejo Automotivo – Você acredita que a alta taxa de endividamento das famílias brasileiras pode desembocar em uma desaceleração do varejo no ano de 2023?

Pedro João Gonçalves – O aumento de endividamento das famílias não é favorável à evolução do consumo. Isso tende a ocorrer porque o pagamento das dívidas pode reduzir a parcela

disponível para o consumo. O contexto é de endividamento elevado das famílias. De acordo com o Banco Central do Brasil, em setembro deste ano o comprometimento da renda das famílias com o serviço das dívidas chegou a 26,7%, o que é o recorde da série, iniciada em 2005. Mas, provavelmente, o fator que mais tende a contribuir para uma desaceleração do varejo em 2023 é a manutenção dos juros básicos (taxa Selic) elevados por um longo período de tempo. Os juros básicos tendem a influenciar a evolução dos juros no mercado; se mantidos elevados, contribuem para um crescimento menor da economia, e assim, para uma desaceleração das vendas do varejo.

NVA – Neste momento de inadimplência, alguns consumidores buscam alternativas de crédito de ‘menor exigência’, como os carnês, por exemplo. O que o varejista de pequeno e médio porte precisa avaliar antes de oferecer estas modalidades  ‘alternativas’?

PJG – Os varejistas devem buscar trabalhar com modalidades que ofereçam proteção à inadimplência. Por exemplo, a concessão de vendas a prazo pode ser feita para um cliente com cadastro na empresa, com um histórico favorável de pagamento, a consulta aos órgãos de proteção ao crédito ou a aceitação de vendas com o uso do cartão de crédito. A pesquisa do Sebrae-SP “A inadimplência dos clientes das micro e pequenas empresas” mostra que essas opções estão entre as utilizadas pelos varejistas.

NVA – Você acredita que a manutenção permanente do auxílio de R$ 600,00 pode amenizar o impacto atual da inadimplência e servir como um motor para o consumo nos próximo ano? PJG – O Auxílio Brasil (Bolsa Família) e outras transferências de renda (por exemplo, benefícios previdenciários) poderão ter um papel relevante para a evolução da massa de rendimentos da população. A massa de rendimentos é o total de rendimentos recebidos pela população. O crescimento da massa de rendimento poderá contribuir para um resultado mais favorável do consumo de itens básicos, ou seja, itens de menor valor unitário (mais baratos), em geral transacionados a vista.

NVA – Quais são os segmentos do varejo que mais devem sofrer pelo alto índice de inadimplência e possível escassez de crédito dos consumidores?

PJG – Os segmentos que tendem a ser mais afetados por um aumento no índice de inadimplência e eventual dificuldade no acesso ao crédito são aqueles que vendem produtos de maior valor unitário (produtos relativamente mais caros). Nesses segmentos, as transações a prazo são relativamente mais relevantes no total de vendas. São exemplos os segmentos do comércio de móveis, materiais de construção, eletrodomésticos e eletroeletrônicos e veículos.

NVA – O Sebrae possui um trabalho importante junto ao setor de manutenção automotiva, tanto no que diz respeito a lojas de autopeças, quanto no elo dos reparadores. De maneira geral, vocês veem uma relutância maior da população em realizar reparos e manutenções de seus carros quando o crédito está restrito?

 PJG – Uma restrição maior ao crédito tende a afetar de forma mais pronunciada os segmentos que vendem produtos e serviços de maior valor unitário. Dessa forma, os serviços de manutenção mais caros tendem a ser menos demandados. Por outro lado, o crédito mais caro afeta as vendas no mercado de veículos, e o uso de um veículo por um tempo maior pode implicar na necessidade de alguns serviços de manutenção.

NVA – Você vê, no horizonte, algum movimento da conjuntura econômica que possa aliviar a pressão sobre o endividamento das famílias, renegociar dívidas e ampliar o acesso ao crédito no médio e curto prazo?

PJG – Há fatores que podem aliviar a situação das famílias quanto ao endividamento, e que tendem a ocorrer ao longo de 2023, em algum grau. No cenário interno, o principal fator é a queda da inflação. Espera-se uma redução da inflação com o decorrer do tempo, considerando a retração na demanda, dada a manutenção dos juros básicos elevados. Os analistas de mercado esperam uma redução da inflação, e dos juros básicos (Selic) no segundo semestre de 2023. Com uma inflação menor, o poder aquisitivo da população tende a ser preservado, facilitando o pagamento e renegociação de dívidas. Outra questão relevante é o ritmo de evolução da economia global. Quando mais cedo a inflação ceder nas chamadas economias avançadas, por exemplo, Estados Unidos, menos os juros tenderão a subir nessas economias, de forma que elas poderão crescer e assim adquirir mais produtos e serviços de outras economias, como o Brasil.

NVA – Por fim, qual é sua expectativa para o setor varejista em 2023?

 PJG – Para 2023 os analistas de mercado projetam uma desaceleração para o crescimento da economia brasileira. Por exemplo, na edição mais recente do Boletim Focus do Banco Central do Brasil (nota da redação: no momento da entrevista, 9/12/22), a mediana da projeção para o crescimento da economia brasileira (tomada pelo Produto Interno Bruto – PIB) é de 3,05% para 2022 e de 0,75% em 2023. Os fatores mais relevantes que tendem a contribuir para esse resultado são: 1) manutenção dos juros básicos elevados por um período relativamente longo de tempo; 2) ritmo menor de crescimento da economia global, o que deve implicar menores oportunidades para as exportações brasileiras. Nesse cenário, com a economia crescendo num ritmo menor, o varejo também vai crescer num ritmo menor, principalmente devido ao efeitos dos juros relativamente elevados no mercado. Observe-se que desaceleração não significa queda na atividade ou na receita, significa crescimento num ritmo menor. No âmbito do varejo podem ocorrer diferenças entre os segmentos quanto ao crescimento das vendas. Segmentos que vendem itens de menor valor unitário (mais baratos) tendem a apresentar um resultado relativamente mais favorável, por exemplo, alimentos e vestuário. Por outro lado, segmentos que vendem produtos de maior valor unitário tendem a crescer num ritmo menor, pois dependem mais fortemente de vendas a prazo. Os exemplos são os segmentos citados anteriormente. No acumulado de 2022 (janeiro a outubro) as micro e pequenas empresas (MPEs) paulistas do comércio apresentaram crescimento real (descontando a inflação, medida pelo INPC-IBGE) de 1,1% no faturamento. Esses dados são de pesquisa realizada pelo Sebrae-SP com a Fundação Seade. Para 2023, não se espera um crescimento pronunciado para as vendas das MPEs do comércio. No entanto, dadas as características de muitos dos itens vendidos por essas empresas (itens de baixo valor unitário, muitos deles vendidos a vista), também não se espera um redução forte nesse ritmo de crescimento.


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