Especialista em China detalha avanço da economia do país e impactos sobre a fotografia do comércio internacional -

Especialista em China detalha avanço da economia do país e impactos sobre a fotografia do comércio internacional

Para Alana Camoça, recentes tarifas impostas pelo Brasil se diferenciam de políticas anti-China adotadas por países como os Estados Unidos

O que faz um país sair de uma posição de pouca relevância no cenário econômico global para o posto de coprotagonista num pe – ríodo de apenas 50 anos? O caminho trilhado pela China da déca – da de 1970 para cá tem inspirado uma série de estudos voltados a analisar os pilares estratégicos que impulsionaram a ascensão meteórica do gigante asiático. Para o mundo ocidental, esses estudos têm motivação diversa. Afinal, enquanto alguns países buscam beber no modelo chinês para inspirar seus próprios crescimentos, outros visam encontrar pontos fracos que possam ser explorados para brecar uma escala – da que ameaça o status quo da ordem da economia mundial. Tais discussões interessam, e muito, ao Brasil. Afinal, a China é, desde 2009, o principal parceiro comercial do país e tem grande destaque em setores-chave como o de autopeças e componentes automotivos, para os quais exporta um volume anual acima dos 3 bilhões de dólares.

Para além das relações comerciais estreitas, que incluem a parceria nos Brics, estudar o cenário chinês nos ajuda a compreender por que o governo brasileiro vem se somando a um grande elenco de países dispostos a ‘se proteger’ de um avanço ainda maior da nação asiática, movimento que pode ser ilustrado, por exemplo, pelas iminentes taxações aos veículos elétricos.

Com o objetivo de compreender melhor os pormenores históricos e a conjuntura atual, conversamos com exclusividade com a doutora em Economia Política Internacional e integrante do Laboratório de Estudos em Economia Política da China (LabChina) da UERJ, Alana Camoça Gonçalves de Oliveira.

A acadêmica chamou a atenção para pontos importantes como o fato de as barreiras tarifárias impostas pelo Brasil a produtos chineses se diferenciarem daquelas adotadas por países como os Estados Unidos por se ancorarem muito mais em uma proteção à sobrevivência e ao avanço da própria indústria do que numa eventual política anti-China.

Novo Varejo – Como a China se tornou um dos principais pla – yers do comércio internacional?

Alana Camoça – Desde a sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, a China iniciou um caminho acelerado em direção à posição de um dos maiores exportadores do mundo. A entrada na OMC permitiu ao país acessar mercados internacionais mais amplos e integrar-se nas cadeias de suprimento globais, fatores cruciais para o crescimento das exportações chinesas. Além disso, a combinação de mão de obra relativamente barata, investimentos massivos em infraestrutura e planos para o desenvolvimento econômico, social e tecnológico foram essenciais para a China se estabelecer como uma potência global no comércio. Do ponto de vista histórico, as estratégias de desenvolvimento econômico da China foram variadas desde as décadas de 1970 e 1980, com mudanças nos motores do crescimento ao longo do tempo. A primeira fase, iniciada no começo da Era Deng, foi caracterizada pela centralidade do consumo doméstico e uma indústria intensiva em trabalho. A segunda fase, que se consolidou durante grande parte do governo Zemin e no início da Era Jintao, viu o surgimento dos modelos “export-led” e “investment-led”, substituindo o consumo doméstico como principais motores de crescimento. Por fim, a terceira fase, que se desenrola na segunda metade do governo Jintao e no governo de Xi Jinping, capitaliza as reformas anteriores e busca crescimento no setor de serviços, com um foco renovado no mercado doméstico através de investimentos governamentais em setores-chave.

 Ainda na era Xi, o país também passou a investir significativamente na exportação de infraestrutura, internacionalização das empresas chinesas e no desenvolvimento tecnológico via investimento em P&D e medidas de proteção e estímulo governamental a setores de tecnologia e telecomunicações. Nesse processo, o planejamento, a regulação e o controle governamental foram fundamentais, incluindo o planejamento estatal para o desenvolvimento de infraestrutura econômica (estradas, portos, eletricidade, irrigação, transporte, comunicação, etc.), a intervenção governamental para promover a indústria (controlando a entrada de concorrentes), políticas industriais protecionistas para substituir importações, incentivos governamentais com subsídios e garantias de crédito, proteção contra importações e políticas de estímulo para joint ventures. Em resumo, a estratégia de desenvolvimento implementada pelas autoridades chinesas tem sido orientada pelas metas econômicas estabelecidas pelo Partido Comunista Chinês em seus Planos Quinquenais, que fornecem diretrizes, estratégias e políticas para o desenvolvimento nacional. Esses planos estabelecem metas sociais e destacam os setores considerados chave pelo governo. O papel do Estado e do partido é central nesse processo, atuando como planejador, investidor, regulador, estabilizador e provedor de bens públicos.

Novo Varejo – Sabemos que a indústria de autopeças tem a China como seu principal parceiro nas importações. Quando aquele antigo preconceito com produtos chineses passou a se dissipar e como isso tem influenciado mercados como o brasileiro?

 Alana Camoça – Os fabricantes chineses agora são capazes de fabricar produtos em todos os níveis da cadeia de valor, desde produtos de alta qualidade a um custo mais elevado, até produtos de médio alcance e inferiores a custos mais baixos. Esta é uma mudança significativa em relação ao passado, quando limitações nas competências técnicas e de qualidade na China resultavam em uma reputação de produzir produtos inferiores a baixo custo. Essa mu dança tem ocorrido, sobretudo no século XXI. Destaca-se que o su – cesso da China nas cadeias globais no século XXI transformou sua estratégia nos últimos anos. Sob o governo de Xi Jinping, o país passou a focar significativamente na distribuição de renda entre a população e na correção de gargalos criados ao longo do processo de desenvolvimento. O objetivo nos últimos anos passou a ser o de promover o desenvolvimento econômico e o crescimento por meio do setor tecnológico, além de direcionar políticas para aumentar a relevância do mercado doméstico. Os últimos dois planos quinquenais destacam a inovação como motor do desenvolvimento e do crescimento da China, promovendo reformas e a integração de diversos setores com ênfase nas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). Simultaneamente, o mercado doméstico ganhou nova importância, com foco na resolução de problemas estruturais de oferta e fornecimento. Desde a ascensão de Xi Jinping, setores como manufatura (com ênfase no “Made in China 2025”), urbanização (incluindo clusters de cidades e cidades inteligentes) e trans – porte têm recebido mais destaque.

Novo Varejo – Atualmente, vemos um movimento internacional, sobretudo do ocidente, com o objetivo de ‘proteger-se’ do avanço chinês. Quais interesses regem este movimento? Quais países o lideram?

Alana Camoça – Seria importante diferenciar esse teor da “proteção”. Existem países, como o Brasil, que têm promovido medidas protecionistas com o intuito de proteger sua própria indústria nascente, infante ou estagnada. Não por acaso, o Brasil tem buscado promover a “reindustrialização” ou “neoindustrialização”. Nesse caso, o interesse é tentar fortalecer-se economicamente e trans – formar, mesmo que de forma inicial, sua própria matriz produtiva e estimular o desenvolvimento industrial e tecnológico do país. Isso tem levado o Brasil a buscar cooperação com a China em vários setores, visando a transferência tecnológica e investimento em infraestrutura. Em contraste, países como os Estados Unidos, além de adotar medidas protecionistas contra produtos e empresas chinesas, estão também em uma campanha para diminuir a imagem da China e posicioná-la como uma ameaça não somente comercial-econômica, mas também política, financeira, cultural, tecnológica e militar. Nesse caso, a disputa relaciona-se tanto com a busca do país em lidar com problemas econômicos internos quan – to em propagar e manter sua supremacia e status de liderança no cenário internacional.

Novo Varejo – Como o Brasil está se posicionando em meio a esse embate econômico cada vez mais pujante entre os grandes players do ocidente e a China? O que está em jogo para o Brasil neste contexto?

Alana Camoça – É difícil definir a atuação do Brasil sem analisar cada governo. Afinal, enquanto o governo Bolsonaro, com uma política externa ideológica, se mostrou mais disposto a aproximar-se dos Estados Unidos, mesmo com forças internas buscando mediar e intensificar relações com a China, o governo Lula apresenta um relativo retorno ao universalismo de relações, colocando a China e outros países emergentes como centrais para a promoção do país na arena internacional. No geral, o Brasil tem se posicionado de forma pragmática no atual governo, negociando e lidando com as duas potências, uma superpotência e uma aspirante à superpotência. Lidar de forma pragmática com ambos em busca dos seus interesses nacionais é central para um país emergente como o Brasil, pois gera espaços de atuação, negociação e manobra, mesmo em meio a um cenário geopolítico mais restritivo no mundo.

Novo Varejo – Você acredita que o avanço da China ameaça, de alguma forma, o status quo do equilíbrio de forças do planeta? Como isso pode mudar o capitalismo como o conhecemos hoje?

Alana Camoça – A ascensão da China pode transformar o equilíbrio de forças no sistema internacional e, em algumas regiões, já o fez. No entanto, ascender no cenário internacional não implica necessariamente uma mudança imediata na ordem que rege esse sistema. Nos próximos anos e décadas, é provável que a disputa por poder se intensifique, mas é improvável que ocorram mudanças significativas nas atuais relações econômico-políticas mundiais. A China, apesar de suas particularidades, se insere no sistema capitalista e opera de acordo com suas regras, adotando estratégias que refletem experiências passadas de outros países quanto ao papel do Estado. Além disso, o governo chinês enfatiza constantemente que não tem interesse em propagar (ou impor) seu modelo econômico-político no exterior.

Novo Varejo – Como você vê a relação entre o avanço de montadoras como BYD no Brasil e a intenção já declarada do governo brasileiro em taxar os veículos elétricos e híbridos? Na sua visão, este movimento faz parte de um ‘bloqueio anti-China’ ou é algo pontual e mais motivado pelas particularidades do setor automotivo brasileiro?

Alana Camoça – Eu entendo que a decisão é fortemente motivada pelas particularidades do setor automotivo brasileiro e pelo lobby da indústria, incluindo o setor de biocombustíveis. É evidente que há argumentos relacionados à preocupação com o meio ambiente, como a dificuldade de reciclagem das baterias dos veículos elétricos e a falta de infraestrutura adequada para o descarte de substâncias tóxicas. No entanto, também há uma pressão para dificultar a competição com produtos importados, o que afetaria especialmente a China, que tem se destacado nesse setor. A indústria busca limitar a competição no mercado brasileiro com produtos importados que não são fabricados localmente, a fim de proteger os carros a combustão produzidos no país. Para tornar viável a fabricação de carros elétricos, seriam necessários investimentos substanciais em P&D e na mineração de insumos ao fornecimento de baterias e montagem do produto final. Portanto, como a com – petição com os carros elétricos chineses é difícil, uma alternativa encontrada é a taxação para proteger o que ainda é produzido, mesmo que de forma incipiente, no país.


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