Lucas Torres jornalismo@novomeio.com.br
Por mais que indústria, distribuidores e varejistas dos diferentes setores da economia possam tentar fazer parecer que a cadeia de produção e entrega tradicional se mantém intacta, a consolidação do mundo digital tem tornado cada vez mais fluidas as fronteiras que delimitavam a área de atuação de cada um dos elos – um movimento, na verdade, iniciado há muito tempo com a flexibilização de cadeias, redução de etapas para mitigar custos e novas configurações de players.
No aftermarket automotivo, por exemplo, é possível ver o avanço deste movimento com o crescente interesse dos fabricantes em estabelecer um ponto de contato direto com o consumidor final. Lojas virtuais oficiais de diversas marcas de autopeças em marketplaces como o Mercado Livre são cada vez mais comuns – ainda que, na grande maioria dos casos, contem com a persona do varejista como intermediário da transação. Diante deste embaralhamento das funções dos elos, varejistas e distribuidores avançam para encontrar formas de seguirem relevantes para além da tarefa de fazer com que o produto de determinada marca chegue à ponta. De acordo com Antônio Sá, sócio fundador da Amicci, consultoria de desenvolvimento e gestão de marcas próprias, a busca por produtos exclusivos, que possam mesclar bom preço e alta qualidade, tem sido um dos caminhos mais procurados por gestores brasileiros.
“Esse aumento na procura pelas marcas próprias advém de uma mudança muito grande no mercado. Está todo mundo concorrendo com todo mundo. Então, ter produtos exclusivos se tornou imperativo quando o assunto é fidelização de clientes”, analisa o executivo da Amicci. Sá, que também é professor dos cursos de MBA e Pós-Graduação nas áreas de Varejo e Marketing na Faculdade Getúlio Vargas (FGV), conta que – embora esteja se acelerando com mais força no Brasil nos últimos anos – este é um movimento bastante consolidado em locais como a Europa e os Estados Unidos.
IMATURIDADE
Segundo ele, em países como a Suíça, o Reino Unido e a Espanha, a proporção de marcas próprias chega a ser de 50%. “A cada dois produtos, um é de marca própria”, relata, complementando que essa proporção chega a 17% nos EUA, enquanto no Brasil ainda está em cerca de 5%. Quando colocados diante de outros dados relacionados ao movimento, como os das pesquisas produzidas por consultorias como a Kantar e a Nielsen, os números apresentados por Sá revelam a imaturidade do mercado brasileiro não apenas na comparação com os locais onde o conceito de marca própria já está consolidado, mas também no comparativo com seus pares sul-americanos: a média do continente gira em torno de 7,9%. Vale lembrar que, quando falamos de varejo, acabamos englobando setores de configuração diversa no que diz respeito ao funcionamento do ecossistema de negócios. Além disso, o consumidor acaba se comportando de maneira diferente em cada um dos segmentos varejistas, de acordo com os produtos procurados.
Por isso, é preciso também estar atento às segmentações que apresentam maior avanço do conceito de marcas próprias. Neste sentido, um levantamento realizado pela Associação Brasileira de Marca Própria e Terceirização (ABmapro) em parceria com a Nielsen apontou itens básicos tais quais papel higiênico (25%), feijão (19%), leite asséptico (18%), óleos para cozinhar (18%), açúcar (15%) e arroz (15%) como os que mais avançaram entre os anos de 2019 e 2020. Para além dos números frios, questionamos o executivo da Amicci sobre os segmentos que buscaram sua consultoria com maior frequência a fim de iniciar o desenvolvimento de suas marcas próprias. Para o especialista, embora os itens de supermercado e vestuário já estejam, de fato, mais consolidados, este é um movimento pulverizado que tem sido capaz de engajar empresas dos mais diferentes nichos. “Temos diversos exemplos no setor automotivo com diferentes itens, desde pneus até o elevador de carros. Outros setores que estão procurando as marcas próprias são o farmacêutico, o mercado de pets, as perfumarias… O varejo como um todo acordou para essa realidade”, relata Sá.
Pandemia acentua aceitação da marca própria no mercado internacional e revela novas oportunidades
Em boa parte do mundo o mercado de marca própria já é uma realidade consolidada. Prova disso é que, de acordo com a ABmapro, o segmento contempla uma média de 16% de todo o consumo global. Assim como ocorreu com muitas das tendências em crescimento até a chegada da pandemia, este segmento teve uma aceleração significativa durante o período e passou a ocupar ainda mais espaço no cenário internacional. A partir de um levantamento realizado junto aos consumidores estadunidenses, a consultoria McKinsey quantificou este movimento em um artigo denominado
‘Tornando marcas próprias em marcas de alta performance’. Os números apresentados no trabalho revelaram não apenas o aumento da disposição dos consumidores para a experimentação – tendência revelada no fato de 38% dos consumidores do país terem experimentado novos produtos e marcas no primeiro semestre de 2020 –, mas também pelo impacto permanente que esse contato com o novo deve produzir: 40% das pessoas que experimentaram novos produtos no período afirmaram que provavelmente seguirão com esses novos hábitos no pós-pandemia. Mas, ora, quem garante que esses novos produtos que passaram a fazer parte dos hábitos de consumo são, necessariamente, de marca própria? A resposta é simples e está contida no mesmo artigo divulgado pela McKinsey.
De acordo com a consultoria, as principais razões para a mudança de marcas durante a pandemia consistiram, nesta ordem: o aumento das preocupações do consumidor com seus gastos e a consequente busca mais frequente por melhores preços; a falta de disponibilidade de produtos que habitualmente consumiam. “Essas duas vantagens características dos produtos de marca própria – alta disponibilidade e preço baixo – fizeram deles consideravelmente mais atrativos para os consumidores durante a pandemia da covid-19”, destacou o trabalho. A reflexão dos especialistas da McKinsey ganhou suporte nos números levantados pelo survey conduzido junto aos consumidores dos Estados Unidos. Segundo a pesquisa, 19% dos consumidores do país pretendiam – em junho de 2020 – consumir mais produtos de marca própria enquanto a crise durasse. Outros 73% pretendiam manter a mesma frequência. E só 8% afirmaram que comprariam menos do que antes.
PROJEÇÕES
Com o objetivo de desenhar uma fotografia que avaliasse a perenidade da expansão do segmento, a McKinsey fez as mesmas perguntas para os consumidores, desta vez buscando aferir suas projeções para até 12 meses após o arrefecimento da pandemia. O resultado deste quadro foi muito semelhante ao que se revelou na pergunta anterior: 17% dos consumidores pensavam em comprar mais produtos de marca própria; 75% projetavam seguir os mesmos hábitos; enquanto 9% pretendiam comprar menos do que antes. Em levantamento similar, mas focando sua pesquisa nos hábitos de consumo do Reino Unido – país onde as marcas próprias já tinham um marketshare de 50% antes da aceleração promovida pela pandemia –, a Kantar foi outra consultoria a constatar o avanço do segmento durante a pandemia.
No artigo denominado ‘De marca própria a marca exclusiva: as implicações de uma revolução nos hábitos de consumo’, a empresa identificou não apenas o crescimento numérico das vendas de produtos de marca própria, mas também a mudança de percepção do consumidor sobre eles. Em relação aos números, a fotografia desenhada foi bastante clara: enquanto as vendas de produtos de marca própria avançaram 14,3% em valor arrecadado e em 15,8% em volume desde 2015, as vendas dos demais produtos cresceram apenas 3,5% em volume e, pior ainda, decresceram 3,7% em valor arrecadado. Já quanto à percepção, os analistas da Kantar identificaram um crescimento simbólico – de reputação – dos produtos de marca própria junto ao consumidor. Relação que, somada ao preço sempre mais baixo, tem ancorado este crescimento exponencial. “À medida que os consumidores acrescentaram mais produtos de marca própria em suas casas, alguns supermercados não apenas aumentaram suas vendas nesta categoria, como também criaram marcas poderosas”, introduziu a Kantar, complementando na sequência: “Consumidores estão começando a ver o que era ‘apenas uma alternativa entre as marcas próprias’, selecionadas puramente pelo preço, como marcas genuinamente desejadas. Como resultado, o crescimento das marcas próprias é maior do que o das marcas tradicionais em 4 das 10 categorias de consumo que levantamos”.