Quando lançou o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Programa Mover) em março de 2024, o Governo Federal deixou claro que a questão da sustentabilidade seria a partir dali tratada como central para a indústria automotiva brasileira.
Para além das montadoras, o novo regime do setor de automóveis do país impactou toda a cadeia de reposição e lançou um alerta para um tema que há muito é discutido e envolvido em discordâncias entre as lideranças do setor: o avanço das autopeças recicladas e remanufaturadas.
No anuário da reposição lançado no início deste ano, o presidente do Sincopeças Brasil, Ranieri Leitão, alertou os leitores que, na esteira do Mover, os próximos anos deverão marcar a consolidação deste mercado, consolidação esta que desafiará o Aftermarket Automotivo.
A declaração do dirigente tem como sustentação o texto base da Lei nº 14.990/2024, que, entre seus diversos pontos, destaca a instituição de requisitos obrigatórios para a comercialização de veículos novos, incluindo metas para a pegada de carbono até 2032, a diferenciação tributária para veículos e peças sustentáveis e a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico (FNDIT), que financiará pesquisas e projetos de inovação na indústria automotiva.
Outro ponto que chama atenção é a regulamentação do regime de autopeças não produzidas, permitindo que a importação desses componentes seja condicionada a investimentos em tecnologia e desenvolvimento local. Além disso, o programa incentiva a remanufatura e a reciclagem de autopeças, estabelecendo critérios para a reciclabilidade veicular e permitindo que empresas que investem nessas práticas tenham benefícios fiscais.
Os principais incentivos do Programa Mover para a economia circular e remanufatura de autopeças incluem:
- Tributação diferenciada para veículos sustentáveis, incluindo aqueles com maior percentual de reciclabilidade, reduzindo o custo para fabricantes e consumidores;
- Metas obrigatórias de pegada de carbono para veículos novos a partir de 2032, o que impulsiona o uso de peças remanufaturadas e práticas sustentáveis na produção;
- Criação de incentivos fiscais para empresas que investem em pesquisa, desenvolvimento e inovação, permitindo o fortalecimento da economia circular e a ampliação do uso de peças remanufaturadas;
- Promoção da logística reversa e da reciclagem veicular, garantindo a destinação correta de materiais e componentes para reaproveitamento;
- Fomento à produção nacional de peças remanufaturadas, incentivando montadoras e fornecedores a investirem nessa alternativa sustentável;
- Uso da metodologia de bônus no IPI, que recompensa veículos com atributos sustentáveis, como maior eficiência energética e maior índice de reciclabilidade
Reparação automotiva não se opõe a mudanças, mas faz ressalvas
Ao oferecer a perspectiva da classe dos reparadores e dos empresários de reparação sobre a tendência da reciclagem e remanufatura das peças d reposição, o presidente do Sindirepa Brasil e do Sindirepa São Paulo, Antonio Fiola, afirmou ver a consolidação da pauta como positiva, desde que seja devidamente regulamentada e siga parâmetros técnicos rigorosos.
“É um tema interessante e que tem o apoio do Sindirepa. Enxergamos de forma positiva esta questão fazer parte do Programa Mover porque terá as devidas medidas de segurança para o reparador saber a procedência das peças”, afirmou o dirigente, antes de complementar:
“Também sob o aspecto ambiental traz muitos benefícios, sendo mais uma forma de obter peças específicas e que são mais difíceis de serem encontradas no mercado, principalmente quando falamos de itens de lataria e estética da parte externa do veículo e aqueles mais eletrônicos que acabam se extraviando em veículos que passam por enchentes, por exemplo. Muitas vezes, essas peças só são encontradas nas concessionárias com alto valor, poder tê-las, mesmo usadas, em boas condições no mercado ajuda muito o processo de reparação”.
Para além do apoio teórico, Fiola listou uma série de ações em que o Sindirepa tem se engajado para impulsionar o movimento. Entre elas está a parceria com a Renova Ecopeças, empresa do Grupo Porto Seguro, por meio do Programa para Melhoria da Consciência da Peça Usada – PMCPU. “Nele, as empresas de reparação de veículos podem se informar como funciona a compra de peças usadas que passam por processo de desmontagem do veículo e atendem as exigências técnicas necessárias para reutilização, conforme normas do Contran – Conselho Nacional de Trânsito”, orientou Fiola.
Embora reforce essa disposição da entidade em apoiar e contribuir para o movimento, a liderança faz uma ressalva peremptória sobre os itens de segurança. Segundo ele, a reutilização de peças como freio, suspensão e transmissão é inadmissível e não possuem a menor possibilidade de serem usadas para aplicação, pois colocaria em risco a vida das pessoas.
Autopeças remanufaturadas são tendência global
O avanço da pauta da sustentabilidade e seu consequente impacto sobre as autopeças remanufaturadas não é exclusividade do Brasil. Aliás, pelo contrário. Dados do mercado global mostram que essa indústria está em expansão acelerada e num estágio muito mais avançado do processo que o Governo Federal brasileiro pretende impulsionar no país com o Programa Mover.
Em 2023, o segmento movimentou US$ 61,46 bilhões, montante que cresceu para US$ 64,93 bilhões no ano passado e cuja projeção é que atinja US$ 91,45 bilhões até 2030, com uma taxa de crescimento anual de cerca de 5,83%.
Segundo Mohammad Tabish Raza, analista da consultoria Global Market Insights (GMI), este cenário tem sido impulsionado pela crescente demanda por alternativas mais acessíveis e a ampliação das políticas de economia circular em diversos países.
Além disso, regiões como América do Norte e a Europa já estão, há algum tempo, convivendo com um cenário que o Brasil conhece bem: o aumento da idade média dos veículos. Assim, com mais quilômetros rodados e componentes sujeitos a desgaste constante, consumidores e frotistas têm optado por peças remanufaturadas em busca de um custo-benefício mais atrativo Para termos uma ideia, a GMI estima que 50% do crescimento do mercado global de reaproveitamento de autopeças até 2027 virá da América do Norte, região que conta com infraestrutura consolidada e regulamentações que favorecem a remanufatura.
No contexto dos veículos comerciais, o mercado tem visto uma crescente adoção de peças remanufaturadas, principalmente em motores, transmissões, freios e sistemas eletrônicos. A preferência por essa alternativa está alinhada a uma estratégia de redução de custos operacionais, especialmente em setores como logística, mineração e transporte público.
A região Ásia-Pacífico também tem se destacado, com países como China, Japão e Índia investindo cada vez mais na remanufatura de autopeças como parte das estratégias de sustentabilidade e redução de resíduos. Neste contexto, Raza afirma que os chineses, em particular, têm liderado a adoção de veículos 100% elétricos (BEVs) e estão fortalecendo a indústria de remanufatura para componentes de baterias e motores elétricos – fator crucial para a sustentabilidade deste novo modal. Já na Índia, a crescente urbanização e o aumento da renda média impulsionam a aceitação de peças remanufaturadas, especialmente entre proprietários de veículos de passeio.
De volta ao cenário europeu, a GMI indica que, além da demanda, regulamentações ambientais rigorosas têm impulsionado a remanufatura como um pilar essencial da economia circular. Neste contexto, governos locais vêm adotando incentivos fiscais e políticas de reciclagem para reduzir o descarte de autopeças e fomentar o reuso de componentes de alto valor agregado.
Enquanto isso, no Oriente Médio e na África, o setor está em crescimento, impulsionado pelo custo acessível das peças remanufaturadas e pela necessidade de prolongar a vida útil dos veículos em regiões onde a renovação de frota ocorre de forma mais lenta.
Outro ponto a impactar o movimento é a evolução tecnológica. Segundo Raza, tecnologias como a inteligência artificial e a impressão 3D estão revolucionando os processos de remanufatura, permitindo maior precisão e eficiência na restauração de componentes.
Por fim, empresas do segmento também têm investido na expansão da produção por meio de parcerias com fabricantes originais (OEMs), fusões e aquisições e o desenvolvimento de marketplaces online, ampliando o alcance das peças remanufaturadas.
Gigantes já começam a se movimentar para trazer movimento ao Brasil
Embora o mercado brasileiro ainda esteja se preparando para acompanhar o movimento global rumo à economia circular, o país já conta com ações que demonstram avanços concretos da pauta.
Um exemplo desse avanço vem sobretudo de montadoras e fornecedores, que têm ampliado a oferta de produtos remanufaturados com garantia de fábrica e especificações rigorosas.
No campo das montadoras, a Stellantis, por exemplo, expandiu sua linha SUSTAINera, que oferece peças remanufaturadas para diversas marcas do grupo. A iniciativa já conta com uma gama de produtos que inclui turbocompressores, caixas de direção, motores de partida, alternadores e bicos injetores, e até o final de 2024 deve atingir mais de 180 componentes. O diferencial está no fato de que esses produtos mantêm a mesma qualidade das peças novas, mas com um custo reduzido e menor impacto ambiental.
Já no campo dos fornecedores, um exemplo relevante é a ZF Aftermarket, grupo que tem investido na remanufatura de embreagens e compressores de ar, garantindo uma redução de até 90% no consumo de matéria-prima e otimizando o uso de energia e água no processo produtivo.
É claro que para avançar, além das iniciativas individuais e do grande guarda-chuva do Programa Mover, o Brasil necessita de aprimoramento, sobretudo no âmbito do esforço regulatório, questão em que regiões como a Europa já deram passos importantes. Ainda assim, os últimos movimentos endossam as declarações de Ranieri Leitão no anuário do Sincopeças e não só indicam que estamos nos posicionando para ser um player estratégico no cenário global, como – e talvez ainda mais relevante neste primeiro momento – também que as empresas do aftermarket terão de se adaptar a uma nova realidade no futuro próximo.
A estratégia 4R da Economia Circular
A Stellantis desenvolveu um negócio abrangente de 360 graus com base na estratégia 4R: Reman, Repair, Reuse e Recycle ou Remanufaturar, Reparar, Reutilizar e Reciclar. É um ecossistema integrado que é vital para preservar e proteger os recursos do planeta.
• Reman (Remanufaturar) – Peças usadas, gastas ou defeituosas são completamente desmontadas, limpas e remanufaturadas de acordo com as especificações originais. Quase 12 mil peças abrangendo 40 linhas de produtos, incluindo baterias de veículos elétricos, estão disponíveis.
• Repair (Reparar) – As peças gastas são reparadas e reinstaladas nos veículos dos clientes. Em 21 locais ao redor do mundo, e-repair centers trabalham com baterias de veículos elétricos.
• Reuse (Reutilizar) – Aproximadamente 4,5 milhões de peças multimarcas em estoque, ainda em bom estado, são recuperadas de veículos em fim de vida e vendidas em 155 países por meio da plataforma de e-commerce B-Parts.
• Recycle (Reciclar) – Resíduos de produção e veículos em fim de vida são reinseridos no processo de fabricação. Em apenas seis meses, a unidade de negócios coletou 1 milhão de peças recicladas.
‘Hubs’ complementados por ‘loops’ locais
O plano da Unidade de Negócios de Economia Circular da Stellantis exige um aumento agressivo de volumes e expansão para novos países, garantindo inovação e requalificação constantes para novas tecnologias.
Remanufatura é alternativa viável e complementar às opções tradicionais
A fim de apurar a visão do varejo sobre a tendência de crescimento do uso de produtos reciclados e remanufaturados no Aftermarket Automotivo, conversamos com Ranieri Leitão, presidente do Sincopeças Brasil
Novo Varejo – O MDIC e o Governo Federal já se posicionaram claramente sobre o incentivo a um melhor aproveitamento das autopeças usadas e remanufaturadas ou você aferiu isso a partir do tema mais amplo da ‘reciclabilidade’ incluso no Mover?
Ranieri Leitão – O setor automotivo tem passado por um momento de forte transformação, impulsionado pela agenda da mobilidade sustentável e pela necessidade de práticas mais eficientes na gestão dos veículos ao longo de seu ciclo de vida. O conceito de reciclabilidade, presente no Programa Mover, reforça a preocupação com a economia circular no setor, promovendo o reaproveitamento de materiais e a busca por soluções mais sustentáveis. No entanto, ainda não há uma diretriz específica que trate exclusivamente do incentivo ao uso de autopeças usadas e remanufaturadas. O mercado segue atento a essas discussões e à evolução das políticas governamentais para garantir que o setor de reposição esteja alinhado às novas exigências e oportunidades.
Novo Varejo – Como o varejo de autopeças e o aftermarket em geral enxergam a possibilidade de termos uma maior circulação de autopeças recicladas e remanufaturadas no mercado de reposição?
Ranieri Leitão – O aftermarket sempre se adapta às necessidades dos consumidores e às transformações tecnológicas. O crescimento da frota circulante e o aumento na demanda por soluções de manutenção eficientes tornam a remanufatura uma alternativa viável e complementar às opções tradicionais. O varejo de autopeças e o aftermarket reconhecem a importância da remanufatura para oferecer produtos acessíveis e sustentáveis, desde que haja garantia de qualidade e rastreabilidade. O setor entende que esse movimento pode contribuir para ampliar a oferta de peças no mercado, mas requer regulamentação clara e critérios bem definidos para assegurar a confiabilidade das peças remanufaturadas.
Novo Varejo – Caso esse incentivo se confirme na prática, como as lojas e os distribuidores de autopeças tradicionais pensam em lidar com essa concorrência? Elas poderiam, por exemplo, passar a comercializar peças desta natureza também?
Ranieri Leitão – Nosso mercado é dinâmico e acompanha as mudanças no perfil de consumo. Se houver incentivo e regulamentação adequados, as empresas do setor podem avaliar a comercialização de autopeças remanufaturadas como uma alternativa complementar ao portfólio atual. A decisão de incorporar esses produtos dependerá da viabilidade técnica, da aceitação do consumidor e das garantias oferecidas pelas fabricantes de peças remanufaturadas. O mais importante é que qualquer evolução nesse sentido mantenha o compromisso com a segurança e a qualidade dos produtos disponíveis no mercado.