No Brasil, descarbonizar não significa eletrificar -

No Brasil, descarbonizar não significa eletrificar

Em entrevista exclusiva, especialista destaca as razões que explicam por que o Brasil será eclético na transição energética da mobilidade. E aponta necessidade de investimentos para que os prestadores de serviços do aftermarket estejam preparados para a futura frota circulante

A aprovação do Programa Mover, em conjunto com iniciativas como o Combustível do Futuro e o Paten (Programa de Aceleração da Transição Energética), sinalizou de forma clara que o caminho brasileiro para a descarbonização da mobilidade não será exclusivamente elétrico. No caso dos veículos leves — que representam mais de 90% da frota circulante nacional —, a diretriz ganha ainda mais relevância ao considerar o perfil técnico, econômico e estrutural do país.

Durante o 1º Congresso da Aliança Aftermarket Automotivo, realizado na Automec 2025, o tema foi abordado pelo diretor de Veículos Comerciais da Abipeças e do Sindipeças e coordenador-geral do Conselho de Administração do MBCBrasil, José Eduardo Luzzi.

Em entrevista exclusiva ao Novo Varejo, ele aprofunda os argumentos apresentados no evento e reforça que o Brasil seguirá um modelo próprio de transição energética — baseado na coexistência entre tecnologias. “O Brasil será eclético na transição energética da mobilidade. A combinação entre biocombustíveis, bioeletrificação e eletrificação pura permitirá múltiplas opções ao consumidor, com viabilidade econômica e efetividade ambiental”, afirma.

O especialista destaca o protagonismo dos veículos híbridos-flex — que unem etanol e eletrificação — em uma configuração de custo mais acessível, menor dependência de infraestrutura de recarga e forte impacto ambiental positivo. Para ele, essa solução é a face mais evidente da neutralidade tecnológica defendida pelo setor.

Projeções do MBCBrasil indicam que, em 2040, os modelos híbridos deverão representar parte significativa dos novos licenciamentos. Ao considerar o crescimento da frota e a lenta renovação, a consequência será clara: o número absoluto de veículos com motores a combustão seguirá elevado nas próximas décadas, o que mantém o aftermarket como um elo vital da cadeia automotiva.

“Hoje, mais de 40% da frota de leves roda com veículos fabricados sob legislações anteriores à L7. É inviável falar em descarbonização sem encarar de frente a necessidade de renovar essa base circulante”, explica Luzzi.

Diante desse cenário, ele alerta que o setor de reposição terá que se adaptar para atender a uma demanda mais complexa — tanto pela pluralidade tecnológica quanto pela sofisticação dos sistemas embarcados. “O reparador vai precisar ser multitarefa. Isso exigirá capitalização, capacitação e acesso a ferramentas modernas, além de uma nova relação com o consumidor final.”

Na entrevista a seguir, Luzzi detalha o papel do aftermarket na transição energética, avalia a maturidade do setor diante das novas tecnologias e aponta caminhos concretos para o reparador que quer se manter competitivo nos próximos anos.

Novo Varejo – O Programa Mover deixou claro que o caminho brasileiro para descarbonizar não passa exclusivamente pela eletrificação. Qual a importância desse posicionamento para o setor de veículos leves — especialmente pensando no aftermarket e na realidade da frota nacional?

José Eduardo Luzzi – Não apenas o programa Mover mas, também, a Lei do Combustível do Futuro e o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten) incentivam a adoção de múltiplas rotas tecnológicas para a descarbonização da mobilidade. O Mover é pioneiro ao considerar o ciclo de vida do “poço à roda”, e, em segundo momento, do “berço ao túmulo”, na medição da real emissão de gases de efeito estufa em cada rota tecnológica a ser adotada. Assim, apura-se a emissão de CO2 desde a extração das matérias- primas, o beneficiamento desses materiais, a produção de peças, componentes e veículos, o uso e finalmente o descarte dos veículos. Com isso, soluções baseadas em biocombustíveis tornam-se viáveis do ponto de vista econômico e eficazes do ponto de vista ambiental. Essa combinação tende a favorecê-las, oferecendo alternativas à eletrificação. O Brasil, diferentemente de outros mercados, será eclético na transição energética da mobilidade. A neutralidade tecnológica, defendida tanto pela Abipeças e pelo Sindipeças, quanto pelo Acordo de Cooperação Mobilidade de Baixo Carbono para o Brasil (MBCB), baseia-se nas vantagens comparativas do Brasil, notadamente:

– Biomassa abundante e diversificada, aliada a tradição, experiência, qualidade e tecnologia na utilização de biocombustíveis, ao longo dos 50 anos de início do programa Proálcool, seja na produção destes energéticos, seja nos motores movidos a eles. 

– Matriz elétrica mais limpa e renovável, que proporciona a menor pegada de carbono para os veículos elétricos que rodam no Brasil:

A combinação de biocombustíveis, entre eles, etanol, biodiesel, HVO, biometano e hidrogênio verde, com a bioeletrificação e a eletrificação pura plug-in da mobilidade, permite múltiplas opções para os usuários finais, dependendo de seu poder aquisitivo, da região de utilização do veículo, da disponibilidade do energético, da infraestrutura oferecida, da vocação do veículo para os diversos nichos de mercado, de forma democrática, economicamente viável e inclusiva. No caso dos veículos leves, o Brasil é pioneiro na tecnologia de automóveis híbridos-flex, combinando as vantagens da eletrificação com a propulsão a etanol, uma solução que proporciona menor emissões de gases de efeito estufa sem os entraves causados pela falta de infraestrutura de postos de recarregamento de baterias, ainda com um custo de aquisição do veículo inferior ao modelo 100% elétrico plug-in. A visão do MBCB, apresentada no gráfico a seguir, é de que o Brasil terá todas as tecnologias que promovam a descarbonização da mobilidade convivendo simultaneamente e harmoniosamente no futuro.

Note que, além dos motores 100% a combustão remanescentes na frota circulante, em 2040 nossas projeções trazem significativa participação dos veículos de combustão combinada, ou seja, as diversas tecnologias de veículos híbridos (mild, plug-in e não plug-in). Combinando a introdução destas novas tecnologias bioelétricas com o crescimento da frota circulante, o número absoluto de veículos equipados com motores a combustão será ainda maior que em 2025, proporcionando oportunidades para o mercado de pós-venda. Entretanto, o segmento terá que se preparar adequadamente para atender as tecnologias emergentes, como os veículos elétricos, bioelétricos, células de combustível, hidrogênio… além da introdução crescente de componentes mais sofisticados, entre eles itens de segurança, módulos de controle cada vez mais avançados, aumento da eletrônica embarcada, aumento da digitalização, da conectividade etc. O setor de pós-venda de peças e serviços terá que ser mais capitalizado para fazer frente aos novos e crescentes investimentos necessários para atender a nova – e mais sofisticada –demanda, além de capacitar adequadamente a sua mão de obra.

Novo Varejo – Hoje, mais de 40% da frota de leves roda com carros fabricados sob legislações anteriores à L7. Num país com essa base, dá para falar em descarbonização sem encarar de frente a renovação da frota?

José Eduardo Luzzi – Há dois vetores para a descarbonização da mobilidade:

  1. Descarbonizar a atual frota circulante;
  2. A introdução de novas tecnologias através do crescimento orgânico do mercado – novos licenciamentos.

Para que se potencialize o objetivo de descarbonização da mobilidade, é imperativo que se atue nestes dois vetores de forma simultânea.

  1. Descarbonização da frota circulante: Claramente há três frentes igualmente importantes para a descarbonização da frota circulante:
  2. Aumento da participação percentual, da mistura de biocombustíveis nos combustíveis fósseis (exemplos E35 e aumento do biodiesel no diesel).
  3. Comportamento dos proprietários de veículos flex; aumentar a conscientização e, com isso, a participação do etanol entre os usuários de veículos flex. Hoje há predominância da gasolina em detrimento do etanol, baseada em tabus não suportados pela ciência.
  4. Renovação de frota: Se tomarmos como exemplo os veículos pesados, que correspondem a 5% da frota circulante no Brasil, porém emitem 53% do total de gases de efeito estufa na mobilidade nacional, a substituição de caminhões com idade avançada por modelos mais novos traria uma significativa, e imediata, contribuição para a redução de gases poluentes e de CO2. A premissa fundamental é que veículos em final de vida útil deveriam ser retirados do mercado e enviados a sucateamento, substituídos por veículos mais atualizados com melhor eficiência energética. Ainda melhor se estes veículos sucateados forem substituídos por veículos com baixa emissão de CO2, por exemplo, GNV, biometano, flex rodando a etanol ou eletrificados.
  5. Introdução de novas tecnologias através do crescimento orgânico: A descarbonização se dá na medida em que novos veículos, zero km, passem a adotar modernas tecnologias que proporcionam melhor eficiência energética, menor consumo de combustível e, preferencialmente, tecnologias de baixa pegada de carbono, como eletrificados ou movidos a biocombustíveis.

Novo Varejo – O estudo do BCG mostra que, mesmo num cenário otimista, os elétricos puros representarão só 40% das vendas de leves em 2040. Isso sinaliza que o aftermarket precisa parar de ver eletrificação como sinônimo de descarbonização?

José Eduardo Luzzi – Sim, o objetivo é a descarbonização, não a eletrificação. Biocombustíveis, elétricos, veículos híbridos flex, aumento do blend de biocombustíveis nos combustíveis fósseis, mudança do comportamento de proprietários de automóveis flex, renovação de frota e introdução de novas tecnologias com melhor eficiência energética são múltiplas alternativas que levam à descarbonização da mobilidade. O Brasil tem essa vantagem comparativa, e não dependerá apenas da eletrificação na transição energética da mobilidade.


Novo Varejo – Com essa pluralidade tecnológica — flex, híbridos, elétricos, biocombustíveis — o reparador vai precisar ser multitarefa. A oficina tradicional está pronta para isso? Ou o risco é ver esse movimento se restringir a nichos mais estruturados?

José Eduardo Luzzi – Sim, há clara tendência de que as novas tecnologias, não apenas aquelas que promovam a descarbonização, exigirão maiores investimentos dos reparadores, ferramentas e oficinais mais modernas e funcionais capazes de atender todas as tecnologias disponíveis, atualizadas, bem estruturadas, com maior nível de profissionalização, tendo sua mão de obra capacitada para estes novos desafios. Há também o aumento do período de garantia de veículos novos, que tende a concentrar, por um período maior, o cliente nas concessionárias das montadoras. Sem falar na dificuldade de acesso a softwares e dispositivos de diagnóstico desenvolvidos pelas fabricantes de veículos. Assim, haverá maior competição entre os reparadores independentes e as redes de concessionárias. Competência técnica, modernidade, atualização tecnológica, versatilidade, agilidade, serviço adequado e preços competitivos serão os fatores-chaves de sucesso.


Novo Varejo – Você acredita que a manutenção de elétricos será um nicho isolado ou tende a ganhar corpo mesmo com a baixa penetração prevista até 2040? E nesse cenário, como fica a oferta de peças para esse tipo de motorização?
José Eduardo Luzzi – Os reparadores e oficinas independentes precisarão passar por um processo de reciclagem profissional, requalificação da mão de obra, aumento da capitalização para fazer frente aos novos investimentos, ou seja, passar por uma reestruturação para melhor atender clientes mais sofisticados, mais exigentes, com veículos cada vez mais tecnológicos, caso queiram participar do mercado de pós-venda futuro. Aqueles que não se adaptarem adequadamente ficarão restritos a prestação de serviços oferecidos para os veículos tradicionais e antigos, movidos a motores a combustão com menor tecnologia embarcada. Nesse sentido, haverá diferentes categorias de prestadores de pós-venda, atendendo a nichos de mercado: concessionárias das montadoras, postos de assistência técnica capitalizados e atualizados das empresas autopeças sistemistas, reparadores independentes bem estruturados e capitalizados para atender a todos os tipos de veículos e de clientes, e os nichos dedicados a frota circulante tradicional, cada vez mais composta por veículos com idade avançada. Quanto mais estruturado e preparado, quanto mais eclético e competente na prestação de serviço, maior será o valor agregado e o retorno financeiro do prestador.

Novo Varejo – O BCG aponta que 44% dos fornecedores de autopeças ainda estão em compasso de espera quanto à eletrificação. Esse dado é preocupante ou realista diante de um programa como o Mover, que aposta em soluções múltiplas?
José Eduardo Luzzi –  O Brasil tem um parque industrial de autopeças muito abrangente, qualificado, capitalizado, atualizado tecnologicamente, que oferece praticamente todas as peças e componentes de veículos leves e pesados, com raras exceções a alguns itens eletrônicos cujos elevados investimentos exigem demanda. Há diversos fabricantes de autopeças internacionais, com presença fabril no Brasil, portanto com acesso às novas tecnologias já disponíveis em suas casas matrizes. O ritmo de introdução das novas tecnologias no Brasil acompanhará a demanda.


Novo Varejo – Se a estratégia nacional não for puramente elétrica, o Brasil precisa de política industrial para o etanol, para o híbrido, para o flex… Você acredita que o Mover dá conta de estimular todos esses vetores ao mesmo tempo?
José Eduardo Luzzi – O aumento gradual da demanda por novos energéticos na mobilidade, não apenas o aumento previsto da demanda por etanol, mas também por biometano, biodiesel, HVO, hidrogênio e eletricidade limpa, exigirá um esforço coletivo entre os poderes públicos e privados, não apenas para assegurar a oferta on time destes energéticos, mas também em sua logística e distribuição. No caso dos elétricos, serão necessários maciços investimentos em infraestrutura de postos de recarregamento de baterias, além do expressivo aumento da demanda de energia elétrica limpa pela sociedade e pela digitalização, incluindo a inteligência artificial.

Esse esforço coletivo terá de ser suportado por novas, específicas e diversas políticas públicas, além de expressivos investimentos em toda a cadeia com linhas de financiamento acessíveis. Daí a importância de programas governamentais como o Mover, o Combustível do Futuro, o Paten, entre outros.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Notícias Relacionadas