O dia em que a Ford entrou para o negócio dos desmanches -

O dia em que a Ford entrou para o negócio dos desmanches

Com o objetivo de se tornar a maior recicladora de veículos do mundo, fabricante foi às compras e montou uma rede de 30 ferros-velhos. A inexperiência no ramo fez com que o projeto naufragasse

Claudio Milan [email protected]

O texano Ron Sturgeon cursava o último ano do ensino médio quando seu pai morreu subitamente deixando como herança 2 mil dólares, um Fusca 1965 e nenhum lugar para morar. Por sorte, o jovem tinha adquirido conhecimento em mecânica graças à sua participação em corridas de arrancada. Foi com essa bagagem e um forte sentimento de desespero que Sturgeon, aos 19 anos, abriu, em 1973, a oficina AAA Bug Service, especializada na manutenção dos Volkswagen. Para realizar os serviços, o empreendedor comprava Fuscas velhos e os desmontava para tirar peças. Logo começou também a vender os componentes e não demorou a perceber que ganhava mais dinheiro com eles do que com a oficina.

Com 35 carros doadores acumulados no pátio, o jovem abriu um novo negócio, em 1978: o AAA Small Car World, um ferro-velho no bom português. “Pagar 100 dólares por um carro velho, vender o motor por 150 e ainda ficar com o resto do carro, isso é um bom negócio”, costumava dizer.

Com talento natural para empreender, Ron Sturgeon fez a empresa crescer, chegando a seis grandes pátios, 150 funcionários e 15 milhões de dólares em vendas por ano, com lucro líquido de 30%. Cresceu tanto que, um dia, a Ford Motors Company bateu à sua porta.

RECICLAGEM

A ideia nasceu por volta de 1997 na cabeça de Bill Li, então diretor de desenvolvimento de negócios da montadora norte-americana. O jovem executivo achou que seria interessante para os negócios ter uma empresa de reciclagem de veículos. Segundo defendia, o potencial do mercado era imenso porque a demanda das oficinas de reparação por peças usadas era muito maior que a oferta. A proposta foi levada ao board da Ford, que aprovou.

Naquela época, havia mais de 10 mil desmanches nos Estados Unidos – a maioria familiar –, responsáveis por absorver cerca de 11 milhões de veículos sucateados por ano. A meta proposta por Bill Li era reciclar pelo menos 90% dos componentes destes automóveis – latarias, iluminação, peças, motores e transmissões –, produtos a serem comercializados para concessionárias, oficinas mecânicas e companhias de seguro. Também haveria destinação de parte dos materiais reciclados para a própria Ford e seus fornecedores – metais, vidros e plásticos.

 Com o ambicioso objetivo de se tornar a maior recicladora de automóveis do mundo, a montadora anunciou então, em 1999, a criação da subsidiária Greenleaf que, de acordo com o plano de negócios estabelecido, agregaria receitas anuais de 1 bilhão de dólares ao grupo quando as operações estivessem funcionando a todo vapor desmontando veículos leves e caminhões, que teriam suas peças vendidas a oficinas, concessionárias, seguradoras e consumidores. A pretensão era estabelecer uma operação global em cinco anos. E de onde viria a matéria prima? Para encurtar caminho, a Ford decidiu comprar desmanches existentes e formar uma rede de abastecimento de componentes usados, que seriam encaminhados para novas unidades de reciclagem.

AQUISIÇÕES

O primeiro desmanche comprado pela montadora foi o Copher Brothers Parts, em Tampa, Flórida, empresa familiar fundada em 1969. Fora dos Estados Unidos, a Ford logo comprou três empresas, entre elas a Lecavalier Auto Parts, que tinha quatro pátios, 170 funcionários e vendas anuais de 42 milhões de dólares. Foi nesse movimento que, em 1999, a campainha de Ron Sturgeon, proprietário do AAA Small Car World, tocou. Era a Ford, com uma proposta de cerca de 15 milhões de dólares pela compra de sua empresa. O negócio foi fechado e a inusitada rede de desmanches da montadora não pararia por aí. No total, cerca de 30 empresas de desmonte de veículos seriam adquiridas nos anos seguintes.

Falta de experiência levou subsidiária ao fracasso

Por volta de 2002, o futuro da Greenleaf já era motivo de questionamentos dentro da própria Ford. Executivos começavam a admitir que o projeto não tinha sido uma boa decisão para os negócios e rumores circulavam de que a montadora poderia vender seus ativos na subsidiária. Entre os principais obstáculos encontrados estava a óbvia e completa inexperiência nas operações de desmonte e reciclagem de veículos.

Os carros sucateados também vinham sendo adquiridos a preços muito acima do mercado – nas palavras de um executivo, “preços que não existiam”. A montadora também assumiu um custo elevado em pesquisa e desenvolvimento para implementar práticas e tecnologias mais modernas na operação de desmonte e reciclagem de veículos – não, não faria qualquer sentido para uma empresa do porte e prestígio da Ford “picar” um carro velho no machado… Apesar de todas as dificuldades enfrentadas durante o processo, a Greenleaf manteve suas atividades até 2011 – mas bem antes disso começou a se desfazer dos desmanches adquiridos. Em geral, eles foram vendidos aos ex-proprietários. C

omo a Lecavalier Auto Parts, do Canadá, que voltou para as mãos da família fundadora Fugre. E, é claro, o AAA Small Car World, de Ron Sturgeon. Após recuperar seu ferro-velho, o astuto empresário do Texas reorganizou as finanças da empresa e, dois anos depois, vendeu novamente o desmanche, desta vez para a Schnitzer Industries pela bagatela de 23,5 milhões de dólares. Feliz da vida por fazer muito dinheiro duas vezes com a venda do mesmo negócio, Sturgeon acumula hoje uma fortuna de 75 milhões de dólares – que promete deixar de herança para seus dois cachorros – e continua empreendendo em diferentes setores, entre eles o imobiliário. Virou também coach e palestrante. Nada mal para quem começou a carreira empresarial desmontando Fuscas e morando num trailer.


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