Retorno da inflação impacta mercado de reposição -

Retorno da inflação impacta mercado de reposição

Instabilidade política e crise energética encabeçam escalada nos preços. Analistas avaliam causas e efeitos do cenário que tem frustrado as expectativas de retomada a partir da reabertura econômica

Lucas Torres [email protected]

Semanalmente a equipe de profissionais do After.Lab – empresa de inteligência de mercado com atuação no Aftermarket Automotivo – entrevista mais de uma centena de empresários e gestores do varejo de autopeças a fim de apurar as movimentações do setor em vendas, compras, abastecimento e preços. O último atributo é um dos dois componentes da pesquisa ONDA – Oscilações nos Níveis de Abastecimento e Preços.

E a rotina se repete há mais de um ano: unanimidade dos entrevistados na percepção de variação para cima nos custos dos componentes automotivos. A conjuntura que vem marcando o comércio de autopeças desde os primeiros meses da pandemia da covid-19 hoje não preocupa apenas o trade. A volta de um dos maiores entreves à estabilidade econômica assombra qualquer brasileiro que empreendeu ou trabalhou na década de 80 e primeiros anos da década de 90 do século passado. Movimento já incômodo nos meses que marcaram a virada do ano de 2020 e o início de 2021, a escalada da inflação no país parece ter saído definitivamente de controle ao longo do último quadrimestre.

O cenário de descontrole está explícito não apenas nas dificuldades cada vez maiores enfrentadas por cidadãos e empresas brasileiras, mas também nos diferentes índices divulgados periodicamente, inclusive pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ainda em fevereiro de 2021, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado em uma linha do tempo de 12 meses marcava alta de 5,20%, pouco abaixo do teto da meta de 5,25% estabelecida pelo Governo Federal para o atual calendário. O que estava no ‘limite do aceitável’ até então passou a submergir nas águas inflacionárias no último mês de março – quando a alta do IPCA anual chegou a 6,10%, marca que viria a ser apenas um prenúncio da gravidade da situação, exposta nos 8,99% anotados no mês de julho.

E, dependendo do índice tomado como parâmetro, a situação pode ser ainda pior. Um exemplo é o Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI) calculado pela FGV e que mede a variação de preços tanto nos bens de consumo quanto nos bens de produção. Em julho, o IGP-DI acumulava alta de 15,91% no ano e 33,35% em 12 meses.

Desvalorização do real acelera alta nos preços e desafia importadores de autopeças

De acordo com o diretor de estudos e políticas macroeconômicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), José Ronaldo de Castro Souza Jr., a desvalorização aguda do real foi o principal gatilho para o estrangulamento do poder de compra da população e, ainda com uma defasagem acima dos R$ 5 para o dólar, segue impactando neste ambiente. “O real desvalorizado tem impacto direto nos preços dos produtos importados, nos preços dos produtos que a gente exporta, no aumento do custo de produção, no custo da matéria prima…

Este é o primeiro ponto que gerou a alta inflacionária e a fez se espalhar por todos os setores”, analisou Souza Jr. Recentemente entrevistado pela reportagem do Novo Varejo, Guido Luporini – diretor de uma das mais tradicionais importadoras de autopeças do país, a Luporini – lamentou a defasagem cambial e foi além. “Realmente a variação cambial é ponto impactante nos negócios. Mas não é só isso. Estão ocorrendo também aumentos nos preços dos produtos devido a reajustes de matérias primas”.

A capacidade de pulverização dos aumentos pelos mais diversos setores, destacada pelo especialista do Ipea, também encontra confluência nos números divulgados pelo IBGE em seu último levantamento do IPCA

Dos nove grupos de produtos e serviços pesquisados no estudo, oito apresentaram alta durante o mês de agosto – sendo o segmento de saúde e cuidados pessoais o único a marcar estabilidade, com uma levíssima queda de 0,04%.

Para o advogado e economista Alessandro Azzoni, o cenário impulsionado pela desvalorização cambial não pode ser explicado apenas pela crise da pandemia e poderia ter sido mitigado por uma melhor articulação entre os três poderes que compõem o Estado brasileiro. Segundo o especialista, indicadores como a taxa de câmbio e a bolsa de valores costumam ser os principais termômetros da efetividade das decisões políticas de um governo – de modo que o desequilíbrio desses índices, invariavelmente reflete o nível de segurança gerado pelo modelo de governo que gere o país no momento. “Se o governo está dialogando com os poderes, possui uma boa interlocução e está conseguindo aprovar projetos e reformas importantes para o país, a taxa de câmbio vai refletir uma segurança. Como isso acontece? É simples: pelo fato de termos mais gente comprando nossa moeda e fazendo-a circular na economia, seja por meio da bolsa de valores ou de investimentos diretos dentro do país”, analisou Azzoni, complementando na sequência: “Quando essa segurança não é observada, o investidor fica receoso e retira ou diminui seus investimentos no Brasil e no real. É isso que estamos observando no momento”. Tamanha insegurança na política econômica e institucional por parte dos diferentes agentes do mercado pode fazer com que a esperada retomada em V, ancorada na demanda represada durante a pandemia, dê lugar a uma recuperação mais tímida e insuficiente para compensar o aumento da pressão inflacionária sobre as pessoas físicas ou jurídicas. Esse crescimento mais tímido se reflete na previsão do mercado financeiro para o resultado do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021. Depois de uma alta projetada acima dos 7%, a estimativa para o crescimento do indicador sofreu quedas consecutivas e já é de 5,04% – índice que, no comparativo com a queda de 4,1% registrada em 2020, projeta uma retomada de menos de 1%, margem que pode diminuir ainda mais até o fechamento do balanço anual. Questionado sobre a possibilidade de termos perdido o ‘boom’ da retomada aguardado pelos brasileiros a partir da diminuição das restrições impostas pelo combate à pandemia da covid-19, o economista e sócio da BRA Investimentos, João Beck, foi peremptório. “Já perdemos. O boom não irá ocorrer. É esperado baixo crescimento neste e nos próximos anos. Além das altas taxas de juros, saímos da pandemia endividados, o que restringe investimentos no setor produtivo”, lamentou Beck

Crise hídrica e escassez de energia acrescentam novas camadas de preocupação ao ambiente inflacionário

Para ter a medida da magnitude das altas do custo da energia elétrica no Brasil, basta observar que o item superou em quase três vezes a média da alta inflacionária ao longo de 2021. Enquanto o IPCA saltou 5,81% de janeiro para cá, o aumento das contas de luz foi de 16,07%.

Para José Ronaldo de Castro Souza Jr., do Ipea, o aumento da taxa de energia elétrica – somado à inflação de alimentos que também tem a seca como um de seus motivadores parciais – deixará os brasileiros em uma situação delicada, com grande parte do orçamento destinada às chamadas despesas fixas. O raciocínio do diretor do Ipea é acompanhado pelo advogado e economista Alessandro Azzoni. “A inflação realmente corrói o dinheiro e, somada ao aumento da energia elétrica, diminui de maneira drástica a chance de a população investir em carros, imóveis e nas compras em geral. Acredito que nós estamos indo para um cenário recessivo. Potencializado pelo custo do dinheiro com o aumento da taxa de juros”, apontou Azzoni.

Não bastasse o impacto no custo de vida e de produção do país, a crise energética pode, segundo Azzoni, limitar a capacidade de operação da indústria nacional, caso esta tenha de responder a um improvável aquecimento de demanda. “Se nós retomássemos a economia, o nível de produção pré-crise de 2016, nós provavelmente não teríamos energia para sustentar essa retomada ou passaríamos a conviver com o risco de apagão e racionamento”.

Entre os especialistas ouvidos pela reportagem do Novo Varejo, o sócio da BRA Investimentos, João Beck, foi aquele que ousou se colocar como uma voz de otimismo em meio à crise multifacetada vivida pelo país. Para fazê-lo, se ancorou na esperança de que fenômenos meteorológicos como as geadas e a falta de chuvas presente em 2021 não se repitam no próximo ano. “Por isso, é esperada uma convergência da inflação para níveis menores, por volta de 4% no ano que vem”, projetou Beck.

Destaque After.Lab: percepção de varejistas brasileiros sobre o aumento do preço das autopeças revela dificuldades do setor

As pressões sobre a indústria produtora de autopeças são muitas. Desvalorização cambial, aumento das tarifas portuárias de importação, alta no custo das matérias primas, aumento do custo de operação industrial em razão da elevação das taxas incidentes sobre o uso da energia elétrica…

E como todo setor que opera em cadeia como o aftermarket automotivo, a conta mais cara pela base produtiva acaba inevitavelmente desembocando na ponta. No caso do nosso trade, no varejo de autopeças – segmento que tem constantemente expressado seu descontentamento com o aumento dos preços dos componentes desde a chegada da pandemia.

Principal canal de voz dos empresários do varejo de veículos leves do país, a pesquisa ONDA – Oscilações nos Níveis de Abastecimento e Preços, conduzida pelo After.Lab, ilustra este cenário.

A edição mais recente divulgada pelas plataformas digitais do Novo Varejo e do Aftermarket Automotivo mostra que no período de 6 a 10 de setembro a percepção de alta nos preços apontada pelos varejistas atingiu a média nacional ponderada de 6,99%.

Mais do que analisar o índice em si – até porque a percepção apurada é sempre tratada como um viés de alta por não haver por parte dos entrevistados um acompanhamento metodológico das variações de preços – é importante destacar que essa percepção de alta por parte dos varejistas vem de muito antes de recrudecimento do problema na economia como um todo.

A primeira pesquisa ONDA divulgada pelo Novo Varejo, em junho de 2020, já apontava viés de elevação na casa de 4,6%. Desde então, lá se vão 15 meses de inflação no mercado apontada pelos mais de cem empresários e gestores do varejo ouvidos semanalmente pelos profissionais do After.Lab. E a escalada de preços não ocorre somente na média nacional ponderada.

Da mesma forma que o índice nacional, a apuração das cinco regiões do Brasil vem sistematicamente apontado, ao longo destes 15 meses, que o velho e temido dragão parece ter despertado e está à solta no Aftermarket Automotivo brasileiro.


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