Rio Grande do Sul tem missão complexa para evitar que peças danificadas retornem ao mercado por vias paralelas -

Rio Grande do Sul tem missão complexa para evitar que peças danificadas retornem ao mercado por vias paralelas

Aparato regulatório, no entanto, dá sustentação ao estado neste trabalho, que abrange estoque de peças novas e veículos sucateados

Você tem acompanhado os detalhes dos prejuízos que as enchentes no Rio Grande do Sul trouxeram a todo o ecossistema automotivo. Com a perda de veículos de pessoas físicas, frotas inteiras de locadoras, veículos 0km nos pátios das concessionárias, estoques de lojas e distribuidoras de autopeças, além de equipamentos nas oficinas, os danos passam da casa dos bilhões de reais.

À medida que a magnitude do problema tem sido quantificada por cada um dos players envolvidos, porém, aumentam as preocupações quanto a questões intangíveis que, como em um ‘efeito rebote’, podem trazer prejuízos duradouros não só para as empresas do setor, mas para a sociedade em geral. Entre esses pontos, um dos que mais chamam a atenção neste momento de retomada diz respeito à destinação das autopeças danificadas pelo contato prolongado com a água que ficou das enchentes. Não é preciso ser nenhum especialista em mecânica automotiva para aferir o estrago feito por essa imersão na água suja. Ainda assim, é importante recorrer a experts como o mecânico e palestrante Tales Domingues, conhecido nas redes sociais como ‘Doutor Carro’, para lembrar o quão sensíveis as peças de ferro ou alumínio são a esse contato.

Dono de uma base de mais de 250 mil seguidores no Instagram, Domingues destaca que a simples composição da água – baseada nos elementos hidrogênio e oxigênio – já é, por si só, capaz de levar peças variadas a um rápido processo de oxidação. Essa dinâmica destrutiva da relação entre autopeças e água é, aliás, o principal fator pelo qual, de acordo com levantamento realizado pela Fraga Inteligência Automotiva, os prejuízos de varejos e distribuidores gaúchos no âmbito do estoque alcancem o valor de R$ 380 milhões. Tamanha perda somada a um cenário repleto de vulnerabilidade nos aspectos econômico e social tem feito crescer entre as lideranças do aftermarket automotivo brasileiro a preocupação quanto à destinação que será dada a estes estoques perdidos.

Afinal, tanto a tentativa de mitigação dos danos financeiros quanto a falta de cuidado no descarte dos produtos podem resultar na entrada de uma enxurrada de autopeças danificadas no mercado pelas vias informais. Neste contexto, o presidente do Sincopeças do Rio Grande do Sul, Marco Antônio Vieira Machado, destaca que a situação exige muita atenção de toda a cadeia em torno de práticas de orientação e fiscalização do descarte correto desses estoques perdidos. “Desta forma estaremos combatendo o mercado informal, que já era uma preocupação constante, além de proteger a frota brasileira quanto a qualidade técnica das peças e, consequentemente, a segurança dos veículos. Não podemos correr o risco de termos, daqui uns meses, uma explosão de problemas veiculares causados por peças, que, a princípio, seriam inutilizáveis”, afirmou a liderança.

 No conjunto de ações concretas para prevenir que a situação temida se concretize, Machado aponta a necessidade do engajamento das fábricas, para que estas conversem com seus distribuidores e lojistas afetados para o recolhimento de peças a fim de realizar análise para seleção do que está em condição de uso ou que foi danificado com destino ao descarte cor – reto, buscando mitigar futuros impasses referentes a garantias. “Aos lojistas e distribuidores a orientação é não descartar mercadorias em lixo comum para que não caiam em mãos erra – das como o comércio informal ou desmanches, evitando sua distribuição para todo o Brasil”, complementa o presidente do Sincopeças-RS.

Legislação minimiza riscos quanto à destinação dos veículos sucateados

Dados coletados por diferentes órgãos apontam que o número de veículos que ficarão inutilizáveis após as enchentes no território gaúcho gira em torno dos 300 mil.

Dentro deste volume total, porém, existe uma divisão bastante heterogênea no que diz respeito à propriedade dos automóveis.

Exemplos desses diferentes perfis são: carros de empresas como locadoras e concessionárias; carros de pessoas físicas; carros segurados e não segurados. Mas por que isso é importante? A resposta é, mais uma vez, a destinação das autopeças e das sucatas. Segundo os especialistas ouvidos por nossa reportagem, o grupo dos automóveis vinculados de alguma maneira a pessoas jurídicas (locadoras, concessionárias e seguradoras) é o menos problemático. Isso porque, segundo Fábio Pietoso, leiloeiro profissional e proprietário de uma empresa especializada no segmento, os leilões automotivos serão o destino mais frequente desse grupo e, especialmente no Rio Grande do Sul, essa atividade conta com um aparato bastante robusto no que diz respeito à regulamentação.

Compreender a robustez desse conjunto de regras passa por lembrar que o estado foi o primeiro do país a credenciar os chamados desmanches, iniciando este processo em 2011 e concluindo-o no ano de 2015. Tal credenciamento foi fundamental para fazer valer uma regra central no edital dos leilões oficiais gaúchos, regra esta reforçada pelo Detran estadual em posicionamento dado com exclusividade à nossa reportagem. “Somente podem se habilitar para dar lances em lotes de sucatas os Centros de Desmanches de Veículos Automotores, Comércio de Peças Usadas e Reciclagem de Sucata (CDV) registrados operacionais ou credenciados pelo Departamento Estadual de Trânsito – DETRAN/RS, ou empresas de outras unidades da Federação que tenham como atividade desmontagem de veículos automotores terrestres destinados à comercialização de partes, peças e acessórios automotivos, conforme o Certificado de Credenciamento do Centro de Desmanches de Veículos Automotores, Comércio de Peças Usadas e Reciclagem de Sucata”, afirmou o Detran-RS.

Esse aparato legal e regulatório faz com que líderes do aftermarket como o presidente do Sincopeças-RS, Marco Machado, mostrem-se muito menos preocupados com o destino das peças dos carros do que o fazem quando o assunto se refere aos estoques. Machado destaca, por exemplo, que os CDVs gaúchos contam com um controle de qualidade importante, bem como com um procedimento padrão no quesito cuidado ambiental e, só depois de verificar que as peças atendem a critérios padronizados pelo Inmetro e pelo próprio Detran, é que as disponibilizam para venda. Além de um processo de qualidade bastante estruturado, o uni – verso dos desmanches do Rio Grande do Sul conta com um importante mecanismo de transparência na distribuição e venda desses produtos reutilizáveis: o site Peça Legal.

Criado no ano de 2021, o espaço consiste em uma ferramenta de busca que reúne o estoque cadastrado e permite pesquisas por tipo de veículo (carros, motos, caminhões, ônibus e outros), pelo nome da peça que o cidadão procura e também pelo modelo de veículo. “As peças comercializadas pelos estabelecimentos têm rastreabilidade de origem e respeitam critérios técnicos de segurança e normas ambientais. Já as peças não reutilizáveis vão para destinação ecológica” garante o Detran-RS. Tudo isso disciplina e regulariza o destino das peças retiradas dos carros comercializados em leilão para desmonte dentro das regras estabelecidas impedindo, por exemplo, que componentes relacionados à segurança não sejam vendidos. Mas, não há como evitar uma realidade: muitos milhares de peças fruto de desmonte de veículos, ainda que obedecendo a um arcabouço legal, retornarão ao mercado e representarão concorrência com os estabelecimentos do aftermarket automotivo. Desova A situação, no entanto, se torna mais complexa quando se trata da destinação dos veículos não segurados pertencentes a pes – soas físicas. Nestes casos, a via de ‘desova’ se torna muito mais diversa e exige maior atenção das autoridades fiscalizadoras. O primeiro motivo da preocupação adicional em relação a esses automóveis está relacionado ao volume – fontes do mercado in – dicam que, dentro do escopo de cerca de 300 mil veículos, o per – centual de automóveis sem cobertura de seguro chega a 80%. Já o segundo ponto e, talvez ainda mais sensível, está relaciona – do à falta de controle e padronização na destinação dos carros sucateados. Afinal, por tratarem suas negociações no modelo de ‘varejo’, os proprietários dos automóveis tendem a abrir seus leques de opções e vender seus carros inutilizáveis pela via mais lucrativa possível, ainda que isso signifique não ser necessariamente a mais responsável. Um exemplo dessa pluralidade de opções e caminhos a serem seguidos daqui pra frente foi dado pelo CEO da JVMC Participações, Rodrigo Clemente, cuja empresa está trabalhando para trazer uma frota de 18 mil veículos para São Paulo. “Nossa intenção é trazer todo esse material, com a devida documentação e a ajuda de uma empresa do Sul para a realização de um processo de separação e descontaminação das peças, revender essas autopeças para a indústria e reverter o valor arrecadado em eletrodomésticos para as pessoas que perderam tudo na tragédia”, compartilhou Clemente.

Apesar das preocupações expressas publicamente por nomes do mercado como o diretor da distribuidora Auto Pratense, Rogério Colla, o Sincopeças-RS observa que o cenário tal como está posto pode, também, representar uma oportunidade e não um problema para o aftermarket como um todo. Por meio da opinião de Machado, seu presidente, a entidade projeta que os veículos não segurados provocarão um aumento importante na procura por serviços de recuperação, movimentando toda a ca – deia de negócios do mercado independente. “Os veículos muito novos que derem perda total provavelmente serão recuperados e irão a leilão com valores atrativos. Imagino que o descarte de veículos dessa natureza será pequeno e não irá comprometer nem o Rio Grande do Sul, nem o Brasil”, projetou a liderança, acrescentando que os veículos zero quilômetro não emplacados serão desmanchados pelas próprias montadoras

RS deve ter boom de leilões de carros para desmonte nos próximos meses

A busca por desovar a frota diagnosticada com perda total irá desembocar diretamente no aumento do volume de leilões de veículos e sucatas no estado do Rio Grande do Sul. Profissional do setor e proprietário da Turani Leilões, Gustavo Turani afirma que tanto empresas como locadoras, seguradoras e os leiloeiros têm pressa para a realização desses eventos. “Há pressa, pois o próprio pátio dos leiloeiros tende a lotar e, do outro lado, há a forte intenção de recapitalizar”, conta. Dados oficiais do Detran, no entanto, mostram que esse aumento significativo na oferta de leilões ainda não se traduzirá nos eventos dos próximos 30 dias. Isso porque, de acordo com a agenda oficial, o estado terá 1.012 veículos (entre conservados e sucatas) leiloados no período, número inferior à média mensal de 1.330 alcançada no primeiro trimestre de 2024.

Presidente do Sindirepa Brasil, Antonio Fiola comenta impacto da enchente nos carros e nas autopeças

Novo Varejo – Por que a exposição a enchentes e alagamentos pode tornar uma autopeça inutilizável?

Antonio Fiola – Porque a água acaba causando corrosão, ferrugem e danifica o funcionamento das peças. Dá para recuperar o carro quando a água não atinge o painel. É importante destacar que, no caso da enchente, a água é suja e vem com barro e contamina mais ainda.

NV – Quais são os componentes mais sensíveis a estes cenários?

AF – Os módulos eletrônicos são os mais sensíveis e acabam oxidando. O módulo fica com água, vai evaporando e forma o zinabre e pode acarretar problemas futuros, por isso a parte eletrônica é a mais sensível.

NV – Existem maneiras seguras de recuperar autopeças expostas a alagamentos e enchentes por longos períodos?

AF – Falando em autopeças é muito complicado, depende muito, a água geralmente acaba comprometendo, o fabricante é que pode avaliar melhor cada situação. No caso de recuperação do veículo, se a água não atingiu o painel do carro, pode ser feita a troca dos feltros e tratamento com higienização interna, mas a água também não pode entrar no escapamento e pelo filtro de ar porque dá calço hidráulico se o carro estiver em movimento.

NV – Quais riscos do retorno dessas peças via mercado irregular, sem uma avaliação criteriosa, representam não apenas para o aftermarket, mas sobretudo para a segurança no trânsito?

AF – Isso é muito preocupante porque sem avaliação pode ser extremamente perigoso e trazer prejuízos para os reparadores, que devem ficar atentos e, principalmente, aos donos dos carros, pois pode colocar em risco a segurança no trânsito.


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