Com a língua sem freios e uma caneta descontrolada, o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, vem acumulando polêmicas em série nas suas primeiras semanas de governo. A mais recente diz respeito à declaração, ao que tudo indica de improviso, que propôs para espanto global “anexar” a faixa de Gaza como “propriedade” dos Estados Unidos. A bravata recebeu reação negativa em todo o planeta, em diferentes graus de descontentamento. Da mesma forma que os devaneios anteriores de anexação do Canal do Panamá, da Groenlândia e do próprio Canadá.
O setor automotivo não tem passado impune à metralhadora giratória do pitoresco empresário/político norte-americano. Em dezembro do ano passado, sob o pretexto de combater a imigração ilegal e o tráfico de drogas, Trump anunciou por meio de rede social que, a partir de 20 de janeiro de 2025, seria instituída uma tarifa de 25% sobre as importações do México e do Canadá – e também prometeu uma tarifa adicional de 10% sobre as importações da China, além de ameaçar a União Europeia com o mesmo castigo. “Eles nos tratam tão mal”, disse o mandatário.
A proposta caiu como uma bomba na indústria mexicana de componentes automotivos. Basta dizer que nada menos que 87% das autopeças produzidas naquele país são destinadas ao mercado dos Estados Unidos. Na verdade, México e Canadá são os maiores parceiros comerciais do Aftermarket Automotivo do país. A INA – Indústria Nacional de Autopartes, equivalente mexicano ao nosso Sindipeças e que representa mais de 700 indústrias, alertou para uma provável elevação nos custos de produção, com consequente aumento de preços ao consumidor, além de risco óbvio à própria sobrevivência de empresas do setor automotivo.
Ao longo do primeiro mês de mandato, Trump também ameaçou os países membros do BRICS com tarifa de importação de 100% caso o bloco venha mesmo a criar uma moeda própria em substituição ao dólar para as transações comerciais entre os integrantes. Uma verdadeira metralhadora giratória atirando para todos os lados.
Embora as três ordens executivas impondo as tarifas tenham sido de fato emitidas em 1º de fevereiro – sendo que a ordem para o Canadá foi publicada dia 3 no site da Casa Branca –, pressões generalizadas e o descontentamento dos governos do México e Canadá fizeram com que o início da vigência da nova alíquota fosse adiado em um mês após conversas com a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, e com o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau. Já a China prometeu contra-ataque feroz na guerra das tarifas e a questão ficou no limbo por enquanto – a mesma reação se viu na União Europeia. Em se tratando de Donald Trump, não há como garantir que as tarifas sejam retomadas daqui um mês ou se, no final das contas, tudo não terá passado de apenas mais um rugido do ‘tigre de papel’ da Casa Branca.
A proposta do presidente dos Estados Unidos não foi mal recebida apenas pelos países alvos da nova tributação. Dentro de seu próprio quintal, os prováveis desdobramentos do tarifaço geraram grande insatisfação. De cara, o aumento no custo das importações teria como consequência uma elevação média de 3 mil dólares nos preços dos carros vendidos na terra do tio Sam, prejudicando, assim, ninguém menos que os consumidores americanos. Estratégia que, na sabedoria popular, é conhecida como ‘tiro no pé’. Políticos democratas protestaram, é claro, sendo acompanhados por empresários e economistas das mais diversas correntes. Um dos desdobramentos nefastos da proposta seria o “grave efeito cascata das tarifações”, atingindo desde os empregos até o custo de vida da população. Em sua rede social, Donald Trump se limitou a dizer que “valerá a pena pagar mais caro”.
A grande questão que sobra é a eventual perspectiva de o Brasil se beneficiar dessa guerra comercial abrindo novas portas para exportação de diferentes segmentos de produtos, eventualmente autopeças. Consultamos o Sindipeças em busca de uma avaliação sobre toda a conjuntura envolvendo a política tarifária do governo americano, mas a entidade ainda não tem uma posição a divulgar. De uma forma geral, entre os economistas parece haver um consenso de que ainda é muito cedo para prever eventuais benefícios.
Aftermarket Automotivo
No Aftermarket Automotivo, a Auto Care Association, entidade que representa a indústria de autopeças com presença no mercado de manutenção veicular dos Estados Unidos, que movimenta mais de 500 bilhões de dólares por ano, já havia exposto anteriormente ao Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR) os efeitos negativos de novas tarifas que atingissem o setor automotivo no pós-venda. Agora, voltou a questionar a perspectiva trazida por Trump. “As tarifas não são pagas pelos nossos parceiros comerciais; em vez disso, são repassadas pela cadeia de suprimentos e representam um ônus financeiro para as famílias que tentam acessar peças para reparar e manter seus veículos. Os atrasos nos reparos e manutenções dos veículos representam um risco à segurança de motoristas, passageiros e pedestres. Além disso, as tarifas são uma grande pressão financeira sobre as empresas, que precisam pagar os custos das tarifas antecipadamente, bloqueando recursos e capital que poderiam ser usados em outros investimentos ou para o crescimento do negócio. Para pequenas e médias empresas, isso pode resultar em desafios de fluxo de caixa, pagamentos atrasados, redução de capacidade e estoque, fazendo com que as empresas reduzam suas operações”, publicou a Auto Care. A entidade destacou, ainda, que nos últimos anos, a manutenção de veículos já vinha sendo adiada entre os proprietários de veículos americanos. “A proporção de consumidores que postergaram qualquer serviço ou reparo de seus veículos passou de 21,6% em 2021 para 25,1% em 2023 (2025 Auto Care Factbook). Entre as várias razões para o adiamento da manutenção e reparo dos veículos, o custo permaneceu como o principal fator. Um aumento potencial de 25% a 100% no custo das peças de reposição de automóveis provavelmente fará com que o preço da manutenção e reparo de veículos aumente ainda mais para os consumidores. Isso resultará em ainda mais veículos em operação nas estradas americanas que estão com a manutenção atrasada e precisam de reparo”.
O presidente e CEO da entidade, Bill Hanvey, destacou a importância do bom funcionamento das cadeias de suprimentos integradas formadas pelos três países do continente, além da China. “Entendemos a importância da segurança nacional e a necessidade de enfrentar desafios críticos, mas essas tarifas terão um impacto direto e negativo sobre os negócios e consumidores americanos. O Canadá e o México são nossos maiores parceiros comerciais, e juntos tornamos a indústria de peças automotivas pós-venda mais competitiva. Nossa indústria depende de cadeias de suprimentos altamente integradas que beneficiam as economias dos três países, garantindo a disponibilidade de reparos acessíveis para milhões de consumidores. Essas cadeias de suprimentos também geram empregos dos dois lados da fronteira, apoiando uma força de trabalho forte e resiliente. Em 2023, a indústria de peças automotivas pós-venda dos EUA importou mais da metade de suas peças automotivas do México e do Canadá, com as importações totais do México representando 46,6% de todas as peças automotivas importadas, e as peças do Canadá representando 11,6%, junto com a China, que representou 8,5%. Tarifas e interrupções nessas cadeias de suprimentos criam ineficiências, aumentam os custos e enfraquecem a capacidade de nossa indústria de competir globalmente. Essas tarifas aumentarão os custos para as famílias americanas que trabalham duro e dependem de peças a preços razoáveis para reparar e manter seus veículos. As tarifas não são pagas pelos nossos parceiros comerciais; elas são pagas pelas empresas e consumidores aqui em casa. Preços mais altos e interrupções nas cadeias de suprimentos significarão atrasos nos reparos essenciais dos veículos, impactando, por fim, a segurança nas estradas. Pedimos que todas as partes se sentem à mesa e negociem uma solução que mantenha nossa indústria forte, proteja os empregos americanos e garanta que os consumidores americanos não paguem o preço”.
Os apelos estão feitos – mundo afora. Resta agora esperar pelo desdobramento deste impasse daqui a pouco menos de um mês. Até lá, ainda há dúvida quanto à imposição de novas alíquotas também para a Europa. Atualmente, fixada em 2,5% para os veículos, existe a possibilidade de chegar também a 25%. Os Estados Unidos representam 20% do total das exportações de automóveis europeus. Enquanto houver munição para abastecer a metralhadora, o mundo que se cuide.
Balança comercial de autopeças dos Estados Unidos com México e Canadá
Importações de Peças Automotivas em 2023 | Exportações de Peças Automotivas em 2023 | |
México | 64,8 bilhões de dólares (47% da participação nas importações totais) | 20,4 bilhões de dólares (40% da participação em todas as exportações) |
Canada | 16,1 bilhões de dólares (12% da participação nas importações totais) | 18,4 bilhões de dólares (36% da participação em todas as exportações) |
Mundo | 138,9 bilhões de dólares | 51,2 bilhões de dólares |
Fonte: 2025 Auto Care Factbook, Dados Comerciais dos EUA por País, NAICS 3363, p. 152