Varejo regional mantém barreira à entrada de concorrentes globais ou nacionais -

Varejo regional mantém barreira à entrada de concorrentes globais ou nacionais

Relacionamento estreito com consumidores e membros da cadeia local é um dos principais ativos dessas empresas

A capacidade de manter um relacionamento estreito com os consumidores e demais players da cadeia local é uma das principais vantagens competitivas dos varejistas e distribuidores de atuação regional. Por mais que, muitas vezes, tais empresas não tenham o mesmo poder de investimento das grandes redes nacionais e globais, essas e outras características criam uma barreira de proteção que não apenas lhes garante a sobrevivência, mas também as posicionam à frente dessa concorrência mais ‘generalista’ em suas áreas de influência.

Na esteira do Maiores e Melhores Regional 2025 – cujos resultados você encontra nesta edição –, entrevistamos o Diretor Executivo de Soluções LATAM da consultoria global Capgemini, Mauricio Andrade de Paula, sobre os diferenciais das empresas regionais, destacando como essa dinâmica segue relevante mesmo em um momento em que a proliferação dos e-commerces e marketplaces parece querer igualar o jogo.

Ao longo da conversa, Andrade, que também é Diretor Vogal do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo & Mercado de Consumo (IBEVAR) e professor da pós-graduação da FIA, também deu dicas importantes para forças regionais que pretendem sair de seus ‘rios locais’ para concorrer no mar aberto da atuação nacional.

Novo Varejo –  Quais são os principais diferenciais do varejo regional no Brasil em comparação com as grandes redes mais generalistas sob o ponto de vista geográfico?

Mauricio Andrade – Vejo 5 diferenciais principais: proximidade cultural e relacional, agilidade nas tomadas de decisão, capacidade de experimentação local, integração com ecossistemas locais e menor dependência de “travas sistêmicas”. Relacionamento: o varejo regional se destaca pela capacidade de criar vínculos mais profundos com a comunidade local. Essa proximidade permite a adaptação rápida a hábitos e preferências locais, o atendimento mais personalizado e humanizado e maior fidelização por meio de relações de confiança, muitas vezes traduzidas por famílias que são donas desses negócios e que possuem presença e reconhecimento nessa região de atuação. As grandes redes operam com padronização e escala a fim de obter redução de custos, o que normalmente remove a possibilidade da flexibilidade e da empatia com o consumidor local. Agilidade estratégica: empresas regionais costumam ter estruturas menos hierarquizadas, o que facilita na obtenção de respostas rápidas a mudanças de mercado, na implementação ágil de novas estratégias e em conseguir maior autonomia para testar soluções inovadoras. Essa agilidade é especialmente valiosa em momentos de crise ou transformação, como apontado nas pesquisas conduzidas com apoio do IBEVAR, ABRAS e APAS. Experimentação: o varejo regional tem mais liberdade para testar novos formatos de loja, implementar tecnologias emergentes em escala reduzida e criar campanhas e ações de marketing hiperlocalizadas levando em consideração festividades e calendários regionais. Essas práticas são menos viáveis em grandes redes, que precisam manter consistência operacional em múltiplas regiões e garantindo condições de preço, por exemplo, em âmbito nacional muitas vezes. Integração com ecossistemas locais: empresas regionais tendem a se integrar melhor com fornecedores locais, com startups e hubs de inovação regionais e com iniciativas comunitárias e sociais. Essa integração fortalece a reputação da marca e aumenta a geração de impactos positivos na economia local. Menos travas sistêmicas: sob uma perspectiva mais tecnológica, enquanto grandes redes enfrentam desafios com sistemas legados complexos ou necessidade de usar sistemas fornecidos de forma obrigatória por suas matrizes internacionais, o varejo regional pode adotar soluções mais modernas e modulares com menor custo e tempo de implementação, conforme comprovado pelos inúmeros projetos ativos que temos aqui na Capgemini com esse tipo de cliente em diferentes partes do Brasil.

Novo Varejo – De que forma fatores culturais e identitários de cada região influenciam o posicionamento das lojas, desde o sortimento até a comunicação?

Mauricio Andrade – O sortimento das lojas é diretamente moldado pelas preferências culturais e hábitos de consumo regionais. Um exemplo é o conceito de “Categorias Destino”, que atraem clientes exclusivamente para produtos específicos como frutas, pães ou vinhos — itens que variam conforme a cultura alimentar local. Já as “Categorias Rotina” e “Conveniência” reforçam a necessidade de adaptação às práticas diárias de cada comunidade. Essa abordagem, que ocorre de forma reforçada em varejistas regionais, permite que este se torne referência em determinadas categorias (seja por qualidade, por marcas próprias ou por uma série de outras possiblidades), gerando fidelização e diferenciação competitiva. A comunicação das lojas tem migrado de campanhas genéricas para narrativas que refletem os valores e o estilo de vida da comunidade. O uso de storytelling imersivo — como ambientes que contam histórias visuais e interativas — é uma tendência observada em muitas dessas lojas para criar conexões emocionais com o consumidor. Além disso, o varejo tem se tornado um espaço de expressão cultural, onde diversidade, inclusão e representatividade são valorizadas como parte da experiência de marca. As lojas físicas estão sendo redesenhadas para se tornarem centros de experiência e serviços, refletindo os valores e aspirações da comunidade. Li certa vez um artigo em que Roberto Funari, ex-CEO da Alpargatas, diz que o consumidor atual busca mais do que produtos — quer entretenimento, conveniência e reconhecimento cultural e eu concordo com esse posicionamento dele, e que pode ser mais bem explorado pelas redes regionais em comparação aos seus pares “generalistas” ou nacionais.

Novo Varejo – As redes de atuação nacional e/ou global têm respondido essas necessidades a partir de estratégias regionalizadas? Como elas conseguem equilibrar esse expediente à necessidade de manter suas identidades?

Mauricio Andrade – As grandes redes têm, sim, na medida do possível, adotado estratégias regionalizadas — e isso tem se tornado um diferencial competitivo essencial. A regionalização aparece em diversas frentes, tais como variações de preço e sortimento por região, expansão mais qualificada da rede que se traduz em uma expansão menos acelerada e mais seletiva e uso do novo retail media como ferramenta para campanhas e comunicações hipersegmentadas, combinando dados primários com espaços físicos e digitais para atingir públicos específicos com maior precisão. A regionalização deixou de ser uma exceção e passou a ser uma exigência estratégica para redes nacionais e globais que desejam se manter relevantes em mercados diversos como o brasileiro. O equilíbrio com a identidade da marca é possível quando há clareza de propósito, governança robusta e uso inteligente de dados.

Novo Varejo – Quais são os segmentos do varejo em que a regionalização se mostra mais importante? Nas autopeças, por exemplo, isso se apresenta?

Mauricio Andrade – Sem dúvida, supermercados, atacarejos e lojas de conveniência são altamente sensíveis às preferências culturais e hábitos alimentares locais. A regionalização se manifesta no sortimento (ex: tipos de cortes de carne, marcas regionais), promoções e até no layout das lojas. A segmentação geodemográfica e comportamental é amplamente usada para adaptar o mix de produtos, preços e horários de funcionamento. No segmento de autopeças a regionalização também é muito relevante e de forma bastante estratégica na minha opinião. O mix de peças precisa refletir a composição da frota local. Regiões com maior presença de veículos utilitários, motos ou carros populares exigem sortimentos específicos. Isso impacta diretamente o giro de estoque e a eficiência logística. Peças de suspensão, filtros e sistemas de arrefecimento, por exemplo, têm demanda diferente em regiões com estradas de terra, clima seco ou alta umidade. Em algumas regiões, há maior propensão à manutenção preventiva por conta da forte presença de indústrias de manufatura ou mesmo do Agro, o que muda o perfil de consumo de peças e serviços. Isso exige campanhas educativas e ofertas específicas. A relação com a rede de serviços é essencial. O varejo de autopeças regionalizado tende a ter maior capilaridade e confiança junto aos mecânicos locais, o que fortalece a fidelização e o volume de vendas. Apenas como referência, esses pontos já foram destacados em estudos como o do IBEVAR em parceria com o Novo Varejo (que ocorreu em 2023 se não estiver enganado), que mapeou a vitalidade de mais de 90 setores do varejo, incluindo o de autopeças, apontando-o como um dos mais resilientes e inovadores.

Novo Varejo – É possível reproduzir esses diferenciais de regionalização no comércio digital ou o e-commerce acaba ‘igualando o jogo’?

Mauricio Andrade – A regionalização começa na retaguarda. Segundo um de nossos últimos relatórios na Capgemini sobre Cadeias de Abastecimento nas indústrias de bens de consumo e varejo, 79% das organizações estão investindo na regionalização da base de fornecedores para garantir agilidade, resiliência e eficiência de custos. Isso permite que o comércio digital ofereça sortimentos adaptados à realidade local, com prazos de entrega mais curtos e menor custo logístico. Em um dos últimos artigos que escrevi, intitulado “Uma nova experiêncI.A. no varejo”, mostro que o e-commerce está sendo redesenhado por agentes de inteligência artificial que atuam como “mordomos virtuais”, antecipando necessidades e tomando decisões de compra com base em critérios como localização, disponibilidade e preferências regionais. Esses agentes não apenas recomendam produtos, mas também pesquisam, comparam e compram em nome dos consumidores — o que permite que marcas e varejistas adaptem suas estratégias digitais para serem “compreendidas” por algoritmos que consideram contexto regional. Estamos observando atualmente o surgimento de pequenos marketplaces digitais regionais que conseguem adaptar o atendimento e a logística conforme a região de atuação, inclusive com parceiros locais e políticas de frete diferenciadas. Outro relatório nosso diz que 66% das organizações planejam segmentar suas cadeias de abastecimento com base em padrões de demanda e dimensões regionais. Isso permite que o e-commerce ofereça produtos mais relevantes para cada região, mesmo sem histórico de consumo — usando técnicas como demand sensing e machine learning, muito ligadas às iniciativas de IA das empresas atualmente. Como em ambientes digitais conseguimos saber de onde o cliente está acessando o conteúdo, site, app, etc, o uso de campanhas digitais segmentadas por região, com linguagem, ofertas e canais adaptados ao perfil local também está crescendo. Isso reforça a identidade regional mesmo em ambientes digitais que podem ser vistos como “globais”. Embora o e-commerce tenha uma aparência de padronização, os bastidores mostram uma crescente sofisticação na regionalização, através de plataformas digitais que permitem testes A/B por região, uso de algoritmos de recomendação que consideram a localização geográfica do consumidor e programas de fidelidade e cashback que são adaptados ao perfil regional. Em resumo, o e-commerce não apenas pode reproduzir os diferenciais regionais — ele pode amplificá-los com tecnologia, dados e automação.

Novo Varejo – Agora, vamos explorar o movimento contrário. O que deve guiar a estratégia de um varejista de sucesso em sua região que deseja expandir sua atuação para o âmbito nacional? Como saber quando é o ‘momento certo’?

Mauricio Andrade – Antes de expandir, é essencial que o varejista tenha fidelização consolidada, rentabilidade sustentável e capacidade de replicar processos comuns / gerais / genéricos com consistência. Esse domínio é o que transforma a operação local em um “laboratório vivo” para testar e validar modelos diferenciados que depois poderão ser escalados. A expansão exige mais do que abrir novas lojas. É preciso ter uma estrutura logística robusta e sistemas de gestão integrados. A tecnologia é um pilar central. Segundo nossa unidade de pesquisa na Capgemini, a nuvem e os dados em tempo real são essenciais para decisões ágeis e padronização inteligente. Mesmo ao expandir nacionalmente, o varejista precisa manter a sensibilidade regional, e como já falamos, isso se traduz em sortimento adaptado, comunicação contextualizada e equipes locais com autonomia.

A expansão física deve sempre ser acompanhada de uma presença digital forte, com domínio dos canais digitais para antecipar ações e coletar dados que serão fundamentais na “tomada de decisão regionalizada”. O “momento certo” para expandir envolve estabilidade financeira e acesso a capital, maturidade operacional, e leitura precisa do mercado. Esse “alinhamento de planetas” é pré-requisito nos processos em que observamos sucesso nessa movimentação.


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