A progressiva eletrificação da frota mundial já deixou de ser uma tendência distante e encontra nos números um suporte para ser considerada uma realidade concreta que, inclusive, já está impactando a indústria automotiva global. Ainda que a Europa discuta uma flexibilização nos prazos de transição tecnológica, a bússola na indústria da mobilidade aponta para a nota matriz.
Um dos efeitos desta ruptura histórica é que o crescimento das vendas de veículos híbridos e elétricos mais cedo ou mais tarde vai alterar a dinâmica do mercado de autopeças, criando novas demandas tecnológicas e pressionando fornecedores de produtos e serviços a se adaptarem a uma transformação que ainda avança em ritmos diferentes ao redor do mundo.
No Brasil, apesar da crescente oferta de veículos eletrificados, a cadeia produtiva ainda não sente uma demanda expressiva por esses componentes. Ainda assim, o país tem precisado lidar com a nova realidade em suas relações com o mercado externo.
Esse novo cenário coincide com um momento desafiador para a balança comercial da indústria de autopeças. Em 2024, o déficit no setor aumentou 34% em relação a 2023, e os primeiros meses de 2025 indicam uma intensificação desse problema. Um fator que preocupa o setor é a decisão do governo argentino de incentivar a eletrificação da frota, estabelecendo uma cota de 50 mil veículos eletrificados com isenção tarifária. Como a Argentina é historicamente o principal destino das exportações brasileiras de autopeças, a medida levanta incertezas sobre o impacto que essa mudança pode trazer para os fornecedores nacionais.
Apesar disso, o Sindipeças tem uma perspectiva mais otimista para 2025 e projeta que o déficit comercial do setor será menor este ano. De acordo com o presidente recentemente reeleito pela entidade, Cláudio Sahad, a recuperação da economia argentina e a desvalorização cambial do real devem ajudar a aumentar as exportações, especialmente para mercados vizinhos.
“Alguns fatores podem contribuir para o aumento das exportações brasileiras de autopeças, como a melhora na situação econômica da Argentina e a expectativa de crescimento de mercados como Chile e Colômbia, importantes para as exportações de peças de reposição”, afirma Sahad.
Nesta entrevista exclusiva, além da análise dos impactos da eletrificação na indústria de autopeças e das projeções mais imediatas para a balança comercial, Sahad abordou também o papel do Brasil na transição energética da indústria automotiva, os desafios da competitividade nacional e a importância de programas como o Mover para impulsionar a inovação do setor.
Novo Varejo – Como a crescente eletrificação da frota do Brasil e a sinalização de incentivo a este modal vinda de países como a Argentina deve impactar o setor de autopeças do país?
Claudio Saad – Nosso setor está preparado para enfrentar os desafios que a eletrificação e a hibridização trarão. Estamos fazendo o dever de casa e estaremos aptos a atender os rumos futuros do mercado automotivo. Basta haver a respectiva demanda por parte das montadoras, o que ainda não ocorreu. Além disso, como a frota brasileira é a sexta maior do planeta (47 milhões de veículos, segundo tradicional levantamento estatístico do Sindipeças), as tecnologias atuais também continuarão presentes durante bom horizonte de tempo. Para 2025, esperamos que as vendas cresçam entre 4% a 5% em relação ao ano passado. Além disso, estimamos um aumento de 5% nas exportações de autopeças.
Novo Varejo – No ano passado, tivemos um aumento do déficit da balança comercial da nossa indústria de autopeças, desequilíbrio este que se acentuou ainda mais agora, no começo do ano. Ainda assim, o Sindipeças projeta que 2025 trará uma redução no déficit na casa dos 12,5%. O que sustenta essa projeção?
Claudio Sahad – Alguns fatores que podem contribuir para o aumento das exportações brasileiras de autopeças são: melhora na situação econômica da Argentina; desvalorização do câmbio, na média anual de 2024 (de R$ 5,39); expectativa de melhora em outros mercados vizinhos, como Chile e Colômbia, importantes para as exportações de peças de reposição. Por outro lado, a mesma desvalorização do câmbio desestimula as importações. Somam-se a isso as incertezas provocadas por discursos e ações do atual presidente dos Estados Unidos. Tudo isso nos leva a crer que o déficit deva ser reduzido.
Novo Varejo – Para além dessas variações para cima ou para baixo ano a ano, quais vocês acreditam serem os fatores capazes de alçar o Brasil a um papel de maior protagonismo no cenário global no segmento?
Claudio Sahad – A maior das nossas oportunidades no momento é a diversidade de nossas fontes de energia limpa, que vão ao encontro da busca do planeta pela descarbonização. Tenho dito isso em vários fóruns e repito nesta entrevista: precisamos saber aproveitar o que a natureza tão generosamente nos concedeu. Temos sol o ano todo, vento unilateral em extensão territorial enorme, rios em abundância e com queda de água, biocombustíveis (entre eles o etanol), hidrogênio verde, ou seja, tudo para liderar as soluções da redução de emissões de carbono na mobilidade.
Novo Varejo – E quais são os principais desafios para tornar isso uma realidade?
Claudio Sahad – São os que atingem horizontalmente todos os setores da economia brasileira, como insegurança jurídica, problemas logísticos, questões trabalhistas e tributárias, para citar alguns. Destaco também a escassez de acordos comerciais que ajudem o País a aumentar sua inserção nas cadeias globais de valor. Além disso, precisamos urgentemente colocar em prática a Renovação de Frota.
Novo Varejo – Qual a importância das bases do Programa Mover para impulsionar nossa indústria a esse papel de protagonismo no âmbito da sustentabilidade que você mencionou?
Claudio Sahad – Investimentos em inovação devem ser constantes. A previsibilidade estimula as empresas a investir sem receio de descontinuidades. De meados do ano passado até o final de janeiro, quase cem empresas associadas ao Sindipeças já estavam habilitadas no programa Mover. Essa quantidade é crescente e já ultrapassou o número de empresas que participaram do Rota 2030. Ao todo, são 163 empresas no período, somando montadoras e fabricantes de pneus, também. Ou seja, a cadeia produtiva está se movimentando. Um dos entraves, porém, é a escassez de recursos desse e de outros programas governamentais. Infelizmente, há mais demanda do que oferta.
Novo Varejo – Nesse sentido, de inovação, quais avanços concretos você apontaria como os mais relevantes da nossa indústria de autopeças nos últimos anos?
Claudio Sahad – O setor de autopeças trabalha em total consonância com as montadoras. Todo desenvolvimento tecnológico implementado pelas montadoras é feito com intrínseca parceria com seus fornecedores de nível 1 e desdobrado ao longo da cadeia de fornecimento. Gosto sempre de citar o grande exemplo da competência de nossa engenharia, que é o motor flex, tecnologia que o País exporta para outros mercados, e que pode ganhar ainda mais relevância na busca planetária pela descarbonização. Temos sempre de lembrar que o inimigo é o CO2 e não a combustão. Portanto, esse tipo de motor, alimentado com biocombustíveis ou até hidrogênio, é de grande valia.